Becky S. Korich

Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Becky S. Korich
Descrição de chapéu

Foge, neném, que os Cucas vêm pegar

A condenação das vítimas de abusos não prescreve

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Não faltam figuras mitológicas nas nossas canções de ninar, nem inocentes bichos-papões na vida real para tirar o nosso sono. Não estou me referindo a uma pessoa específica, mas a todos os Cucas, homens aparentemente do bem, bons filhos, bons maridos, honestos e trabalhadores, e que, por algum desvio, deixam o lado bicho aflorar e são "compelidos" a praticar abusos.

Homens que por uma fraqueza movida pela própria virilidade —ou alguma loucura qualquer—, que nem percebem que estão cometendo a violência ou, quando percebem, a justificam. "Mas foi ela que me provocou", "ela também queria", "ela bebeu demais", "eu bebi demais", "ela que veio para o meu quarto", "com uma roupa dessas, o que mais ela queria?" e tantas outras escusas.

A escolha do Corinthians ao contratar um técnico condenado por um estupro coletivo praticado em 1987, na Suíça, levantou a bola para o debate. Assim que saiu a contratação (e junto com ela as notícias), meu filho, corintiano, 13 anos, a mesma idade que tinha a menina quando foi vítima da violência, perguntou: "Pode isso?".

O técnico, um homem branco de meia idade, veste camiseta branca e boné preto, sentado a uma mesa. Ele fala ao microfone em frente a um fundo com nomes e marcas de patrocinadores do time
O ex-técnico do Corinthians, Cuca, na entrevista coletiva em que foi apresentado no time - Rodrigo Coca - 21.abr.23/Agência Corinthians

Não sou árbitra para julgar se era caso de cartão vermelho; o que sei sobre o caso é o que li nos jornais. Concordo que o time precisava urgentemente de um bom técnico. Mas não fui capaz de relativizar os fatos —e não tive nenhuma intenção nesse sentido. A vontade que tive foi de responder "não, não pode isso". Contudo, posições contundentes não fazem ninguém pensar. Respondi de maneira inversa e primária, dentro da realidade de um menino, para que ele próprio respondesse ao seu questionamento, tentando fazê-lo entender onde começam e o que está por trás de tais comportamentos.

Menos de uma semana depois, veio a resposta concreta: o pedido de demissão. Acontece que a simples saída do treinador não resolve a questão, pois ela é resultado de um problema estrutural. É como flagrar o cônjuge prevaricando no sofá, e tirar o sofá da sala.

Cuca não é uma pessoa perversa, não é um monstro, não é um sociopata. É um homem comum. E é justamente esse o maior problema. Ele (diz que) não se lembra do episódio: faz sentido, porque atos naturais não ocupam um espaço especial na memória das pessoas. E é justamente isso o que mais choca. Tratar uma violência como normal é assustador para nós, mulheres. A vítima tem hoje 49 anos e com certeza se lembra dos momentos aterradores, que passaram despercebidos pela memória dos jogadores. Os agressores foram condenados, mas não cumpriram a pena. Foi ela, a vítima, a condenada, uma condenação irreversível e imprescritível.

No filme "Les Choses Humaines", do genial Yvan Attal, inspirado no romance de Karine Tuil que retrata uma suposta violência sexual, o pai do acusado, machista inveterado, diz algo como: "foram só 20 minutos, 20 minutos não podem estragar a vida do meu filho". O que dirão, então, as mães das crianças vítimas de violências sexuais sobre esses minutos eternos de uma violência?

O bê-á-bá da educação tem que ser ensinado cedo, todos os dias. Pois é desde cedo que se aprende a ser homem de verdade, senão dificilmente se conseguirá aprender depois. Aprende-se a ser homem quando se aceita os próprios limites; quando se entende que não é a força que conquista; quando se compreende que mulheres têm o mesmo direito de vontade dos homens; quando se incorpora a ideia de que mulher não é troféu, não é objeto para satisfazer um ego murcho. Precisamos de um século para derrubar a cultura equivocada e torta, não só na cabeça dos homens, mas também na cabeça de muitas mulheres que aceitam abusos –algumas dentro das próprias casas– sem nem sequer perceberem que estão sendo violadas.

O técnico Cuca pretende provar a sua inocência, e tem esse direito, apesar da conclusão da justiça suíça. Torço para que ele se livre da sua história, condenando, ele mesmo, o homem que já foi um dia. Seja capaz de assumir suas fraquezas e as transforme numa força de combate à violência contra as mulheres, mostrando, assim, que hoje é um outro homem. Torço para que todos os jogadores que o abraçaram no último jogo abracem também essa causa e criem um novo pacto de masculinidade. Torço, enfim, para que seja dado o pontapé inicial para que aconteça a virada desse jogo.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.