Becky S. Korich

Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'

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O bumbum brasileiro pode matar

A violência da mulher contra o próprio corpo: o problema é não saber até onde ir de maneira saudável

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Melissa Kerr tinha um traseiro bonito. Mas não era suficiente, queria um traseiro perfeito. Foi o que motivou a britânica de 31 anos a fazer um turismo estético para realizar o seu sonho. Escolheu a Turquia, um dos países mais procurados para procedimentos estéticos, e lá se submeteu a uma cirurgia conhecida como BBL (Brazilian Butt Lift), que tem como modelo o emulado bumbum brasileiro. Pagou um preço alto. Melissa não voltou para casa.

O assunto veio à tona semana passada, depois que um inquérito realizado no Reino Unido concluiu que Melissa sofreu um coágulo fatal durante a cirurgia. A descoberta levantou alertas sobre a falta de segurança do procedimento e a falta de informação às pacientes dos riscos envolvidos.

Embora não seja novidade, o BBL, também chamado "lifting de bumbum brasileiro", que envolve lipoaspiração e enxerto de gordura para dar volume e levantar as nádegas, figura entre as cirurgias estéticas mais procuradas no mundo –e entre as mais mortais. É um exemplo da banalização de cirurgias complexas e procedimentos em busca da beleza perfeita (existe?).

Prostock-studio / adobe stock

No clássico "O Mito da Beleza", publicado em 1991 mas atualíssimo, Naomi Wolf analisa com profundidade como as imagens de beleza são violentamente usadas contra as mulheres. Essa "conspiração cultural", termo usado por ela, só aumentou com as redes sociais (sim, de novo elas).

No mundo virtual, que é ao mesmo tempo um esconderijo e uma vitrine, parecer é mais importante do que ser. Construímos a nossa identidade em cima de filtros: somos as montagens e avatares que criamos de nós mesmos. E é nesse abismo entre o real e o fabricado que se nutre a nossa eterna insatisfação com o corpo.

A aparência sempre foi uma questão crucial para as mulheres e é hoje a nossa terceira jornada: a tarefa de ter que estar sempre bonita. Não adianta culpar o "sistema". Nós, mulheres, temos uma parcela de culpa nisso, ao permitir que nossa imagem corporal seja um lugar de conflito e tensão. Em vez de deixar nosso corpo viver o melhor de si, fazemos com que ele se volte contra si próprio, em busca do que não é (e às vezes não foi feito para ser).

Tivemos algumas conquistas, conseguimos desconstruir alguns modelos de beleza, mas não podemos nos enganar: continuamos aceitando o regime repressivo do corpo bonito. Por mais que estejamos mais conscientes sobre questões femininas, existe uma lacuna entre o que defendemos e o que vivemos. Nos rendemos facilmente a padrões aos quais temos que nos adequar, quando a fórmula deveria ser inversa: adequar a beleza ao nosso corpo.

O belo está justamente no que nos distingue, na nossa singularidade, no que só o nosso corpo pode expressar. A definição de beleza que é imposta de fora, limita a nossa percepção do que somos e nos afasta de nós mesmos.

É legítimo desejarmos uma pele esticada, um bumbum durinho, seios firmes, barriga chapada, cabelos sedosos e fazer o que pudermos para deixar o nosso corpo em dia. O problema acontece quando sufocamos a expressão do nosso corpo, cerceando a capacidade sensível que só ele tem em seu estado natural; o problema é quando deixamos de enfatizar os nossos atributos exclusivos, em detrimento de padrões comuns; o problema é não saber até onde ir de maneira saudável, sem que a insatisfação com o corpo vire uma obsessão; o problema é confundir manutenção com conserto.

Cometem-se insanidades em nome da beleza. Quebram-se ossos, retiram-se costelas, enxerta-se, implanta-se, explanta-se, toda essa marcenaria em busca de felicidade e empoderamento. Mas, paradoxalmente, o surto do corpo perfeito só pode gerar uma felicidade ilusória e um falso empoderamento.

Se não ensinarmos isso cedo às meninas, será mais difícil que elas aprendam depois. Infelizmente não é isso que acontece. Um exemplo dessa realidade vem do governo do Mato Grosso do Sul que, em maio deste ano, criou medidas "preventivas de bullying", oferecendo cirurgias plásticas para crianças e adolescentes que são importunados por outras por causa da sua aparência. Em vez de punir e educar os agressores, as vítimas é que têm que se "adequar" e se "corrigir".

Para Umberto Eco, que defende a existência simultânea de vários modelos de beleza, "o que estabelece a beleza é o olhar", nunca o objeto observado.

Nossos olhos estão viciados em não enxergar o óbvio, e acabamos perdendo de vista o que é belo de verdade.

Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com dois meses de assinatura digital grátis

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