Becky S. Korich

Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Becky S. Korich

Palavras importam

O ser humano demora dois anos para aprender a falar, mas uma vida toda para fazer o bom uso da fala

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Um conto folclórico narra a história de um poderoso rei que convocou seus súditos, pedindo-lhes que trouxessem a melhor e a pior coisa do mundo. Os súditos estranharam o pedido, mas obedeceram às ordens do rei e correram à busca dos objetos.

Alguns trouxeram ouro, pedras preciosas, relíquias religiosas e objetos valiosos como sendo as melhores coisas; como as piores, trouxeram lixo, plantas venenosas, pragas, objetos quebrados e amuletos malignos.

0
Megafone; ser humano leva uma vida toda para fazer o bom uso da fala - Adriano Vizoni - 12.jun.18/Folhapress

Um homem simples, depois de refletir sobre o pedido, levou ao rei um só objeto: uma língua. "Majestade, esta língua é a melhor coisa do mundo e também a pior coisa do mundo."

O rei quase o expulsou, mas, intrigado, deu a ele uma oportunidade para se explicar. "A língua, majestade, é a melhor coisa do mundo quando é usada para falar a verdade, expressar amor e sabedoria. Ela pode curar corações destroçados e inspirar as pessoas a construir um mundo melhor. Mas ao mesmo tempo, a língua é a pior coisa do mundo quando é usada para mentir, espalhar ódio, semear discórdia e causar dor aos outros."

A fala está exatamente na fronteira entre o pensamento e a ação e, portanto, participa de ambos. Quando não há uma intenção ativa na escolha das palavras que expressamos —ou, pior, quando há deliberadamente uma escolha tosca— desprezamos a força que flui das palavras.

Todas as limpezas étnicas e conflitos entre povos na história moderna, foram precedidos por discursos violentos: começaram, literalmente, com palavras. Surtos de violência em massa e incitamentos contra o "inimigo" (figura criada pelas palavras) eram conhecidos antes do início da violência, mas, ignorados ou intencionalmente rejeitados, abriram as portas para a violência se perpetrar.

Assistimos a um aumento constante de discursos públicos inflamatórios, que leva grande parte das pessoas a participar, ainda que passivamente, do movimento. Se antes o incitamento era feito nas praças das cidades e em marchas, as injúrias de hoje são transmitidas em rede nacional e sob o escudo de telas das redes sociais, o que facilita a disseminação ampla e imediata.

Movimentos antissemitas e xenófobos estão em marcha em todas as partes do mundo. Quando líderes políticos ou celebridades participam dessa marcha em microfones públicos, encorajam os outros a espalhar o ódio e o legitimam em nome do "bem". Legaliza-se, assim, o preconceito e o olhar para minorias como sendo "menos humanos" e oficializa-se a ideia de que as falhas das minorias são questões de caráter, enquanto as próprias, meras fatalidades circunstanciais.

O economista David Yanagizawa-Drott, professor associado de economia na Universidade Harvard, se aprofundou no assunto e escreveu um artigo demonstrando como os meios de comunicação de massa podem afetar diretamente a participação da violência. Ele fez uma pesquisa em Ruanda, e encontrou um resultado impactante: 10% da violência contra a população da minoria Tutsi foi estimulada por uma estação de rádio popular. O artigo aponta evidências de como os meios de comunicação fomentam a participação violenta das pessoas, não só diretamente, como indiretamente, através das interações sociais que delas emerge.

Palavras criam novos fatos, novos conceitos morais. Se elas têm o poder de moldar e delinear a percepção da realidade, a etimologia se define, portanto, como criadora da história. A maneira como falamos e o que ouvimos pode ser ao mesmo tempo o problema e a solução; violências podem ser incitadas ou evitadas, dependendo de como as palavras se manifestam. Não há como "impermeabilizar" o público aos discursos que disseminam preconceitos e sentimentos de ódio. Palavras que ouvimos repetidamente são a força mais poderosa para definir nossa identidade.

O ser humano demora dois anos para aprender a falar, mas uma vida toda para fazer o bom uso da fala. Quando alguém solta uma bobagem e diz que suas palavras foram mal interpretadas, é sinal de que sua fala não deveria ter sido dita: o problema não são os ouvidos, e sim a língua.

As "Três Peneiras de Sócrates", atribuída ao filósofo grego, sugere que antes de falar, façamos uma pausa para três perguntas. A primeira delas: é verdade? A segunda: é bom? Quem sobrevive às duas, enfrenta ao terceiro requisito: é útil? Se não for verdadeiro, bom ou útil, o silêncio será mais valioso.

Se conseguirmos aplicar esses filtros antes de falar, traremos ao mundo mais preciosidades do que rejeitos. Não custa sonhar em silêncio.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.