Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Descrição de chapéu Filmes

Filme argentino reconquista o lugar de resistência da imaginação

É difícil imaginar um robô escrevendo o roteiro de 'Trenque Lauquen', onde tudo está fora do lugar

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Quando me convidaram para um debate sobre centro e periferia, em Buenos Aires, logo pensei em Machado e nas ideias fora do lugar. Também em Borges e Gombrowicz, um fugindo da periferia e o outro do centro, desencontrando-se na mesma cidade.

Entretanto, um filme extraordinário que vi na véspera do encontro me fez repensar tudo de um jeito que antes eu não podia imaginar. Os limites de tempo e do meu portunhol contribuíram para que eu mudasse de rumo. E acabei falando de monstros, de homogeneização e de inteligência artificial.

Dizem que a inteligência artificial vai acabar com os roteiristas, mas é difícil imaginar um robô escrevendo o roteiro de "Trenque Lauquen" (2022), de Laura Citarella, onde tudo está fora do lugar.

Cena do filme argentino "Trenque Lauquen", dirigido por Laura Citarella
Cena do filme argentino "Trenque Lauquen" (2022), dirigido por Laura Citarella - Divulgação

Trenque Lauquen é uma cidade perdida no meio dos pampas, a 500 km de Buenos Aires. Foi construída ao redor de um pequeno lago. Em mapuche, "trenque lauquen" quer dizer "lago redondo". É um lugar desolado, que Citarella converteu em sua "Twin Peaks".

Ao lado de Mariano Llinás, a cineasta é fundadora do coletivo independente El Pampero Cine, e seu filme, embora em princípio não se pareça com nada, não é estranho à deriva narrativa de Llinás em "Histórias Extraordinárias" (2008) e "A Flor" (2018).

Desdobrando-se umas dentro das outras, as histórias vão deixando fios soltos pelo caminho. Nada se fecha, tudo se abre. "É o gênero de ficção interminável, que Borges imaginava. A experiência literária é esse fenômeno expansivo em que os livros compõem uma cadeia infinita que vai se formando conforme lemos", a diretora declarou ao jornal "Libération".

"Trenque Lauquen" está dividido em duas partes e doze capítulos. Dura mais de quatro horas. Começa com dois homens procurando uma mulher desaparecida que os dois amam. O filme dá a entender que acabaram de se conhecer, não querem estar juntos, mas precisam um do outro se quiserem encontrá-la.

Cada um guarda uma parte da história. Um é o namorado de Buenos Aires. O outro, o motorista da prefeitura de Trenque Lauquen, que a acompanhava em seu trabalho de campo, catalogando flores silvestres, enquanto ela lhe falava das cartas de amor que tinha encontrado entre as páginas de um livro na biblioteca municipal.

Na primeira parte, seguimos as versões dos dois apaixonados. Na segunda, a da desaparecida. E com ela a história de um ser híbrido que um dia aparece no lago da cidade, monstro que pode ser jacaré ou mulher e que nunca se vê.

Não ver é fundamental em "Trenque Lauquen". "Um filme não tem a mesma relação de ambiguidade que a literatura. No cinema, a imagem está dada. Então, é preciso trabalhar a ambiguidade de outra forma", a cineasta disse ao "Libération".

Falar sobre Machado e as ideias fora do lugar em debate sobre centro e periferia também tem a ver com visibilidade. Não é só o "humanitismo", filosofia lunática de Quincas Borba, arremedo desvairado das ideias do centro transpostas para a periferia, justificação da barbárie e da escravidão por sermos todos humanos, que revela, como um espelho incômodo, a cara de um mundo que precisa dividir-se entre centro e periferia para não sucumbir às contradições sobre as quais se assenta seu humanismo alimentado pelo comércio de humanos. Há também uma contrapartida formal.

A opacidade da linguagem em Machado é a condição da revelação. Seu realismo tardio, ao contrário da transparência quase cinematográfica da linguagem elegante de Eça de Queirós, já é modernismo. A linguagem se impõe como contradição, encadeamento proverbial e irônico, exposição do autor, estorvo entre a leitura e a visão.

A imaginação é o que a imagem não mostra. Não há revelação onde tudo está à vista. Imaginação e reflexão dependem da resistência do mundo a se revelar.

Não se trata de firula estética: não ver é a condição de possibilidade de imaginar. E sem imaginação não é possível refletir sobre o mundo, nem compreendê-lo.

Os algoritmos representam hoje a parte da transparência. São mecanismos de homogeneização, o desvio substituído pela norma, a manipulação fazendo-se passar por natureza.

Na linguagem exposta em seu limite e imperfeição revela-se a estrutura que a transparência tenta ocultar para o melhor funcionamento de uma máquina de visão do mundo que paradoxalmente o encobre com uma camada de normalidade.

Uma máquina de ilusão e manipulação que o monstro e os fios soltos de "Trenque Lauquen" estorvam, reconquistando, assim como em seu tempo a ironia autorreflexiva de Machado, o lugar de resistência da imaginação.

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