Bernardo Guimarães

Doutor em economia por Yale, foi professor da London School of Economics (2004-2010) e é professor titular da FGV EESP

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A Carta ao Povo Brasileiro não previa o 'Lula 1'

Assim como em 2002, rumos do próximo governo não estão em cartas ou declarações

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Uma grande pergunta é se o novo governo ("Lula 3") será mais parecido com o primeiro mandato de Lula ("Lula 1"), com o seu segundo mandato ou com a era Dilma.

Se falta informação nesse debate, sobram certezas. Na comparação com o Lula 1, sempre vem à tona a "Carta ao Povo Brasileiro", de junho de 2002. Com frequência, leio que a Carta antecipou o que seria o primeiro mandato de Lula.

Eu não faço fé nessa loucura.

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O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), participa de reunião com parlamentares - Gabriela Biló-10.nov.22/Folhapress

O documento foi lido por Lula em 22 de junho de 2002, um sábado, e publicado na Folha na segunda-feira, dia 24, como "a carta de Lula para acalmar o mercado financeiro".

Se acalmou, não foi muito. Naquele dia, o dólar fechou em alta de 1%. Ao final da semana, o real valia ainda menos e não pararia de cair.

Às vésperas do segundo turno da eleição, quando a vitória de Lula estava praticamente garantida, mas ninguém sabia o que seria o novo governo, o dólar valia cerca de 40% a mais que no momento pré-carta.

No primeiro semestre de 2003, esse aumento seria todo revertido. Descobriu-se o que seria o Lula 1 quando o governo começou, não quando saiu a Carta.

De fato, o conteúdo da Carta não antecipava o que seria o Ministério da Economia de Antonio Palocci.

Diz-se por aí que a Carta indicou que o governo Lula na área econômica traria mais continuidade do que ruptura com o governo anterior.

A Carta, porém, começava dizendo que "o atual modelo esgotou-se", "o país não pode insistir nesse caminho". Falava em "mudar para valer" e em "recusar qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou mascarado".

A Carta trazia alguns sinais de moderação. Chamavam muito a atenção frases como "premissa dessa transição será o respeito aos contratos e obrigações do país" e "quero reafirmar o compromisso com o combate à inflação".

À época, isso era moderação. O PT precisava explicar que tinha a intenção de honrar a dívida pública, sem recorrer à inflação, e entendia que isso requeria equilíbrio das contas públicas.

Porém, austeridade fiscal não era o ponto da Carta. Ela culpava o governo FHC por "substituir o populismo cambial pela vulnerabilidade da âncora fiscal", e seguia: "O caminho para superar a fragilidade das finanças públicas é aumentar e melhorar a qualidade das exportações e promover uma substituição competitiva de importações a curto prazo".

Nada na Carta antecipava que o presidente do Banco Central seria um banqueiro deputado eleito pelo PSDB. Nem que a política monetária viesse a ser criticada por economistas acadêmicos liberais (como eu) por juros excessivamente altos —e aplaudida pelo mercado financeiro.

Nada na Carta antecipava que a maioria das principais secretarias do Ministério da Economia seria ocupada por economistas estranhos ao PT, como Marcos Lisboa, Joaquim Levy e Otaviano Canuto.

Nada na Carta antecipava que Lula, depois de vociferar por anos contra as propostas de reforma da Previdência de FHC, entregaria ao congresso uma proposta de reforma com tudo o que havia criticado, quatro meses depois de eleito.

Porque nada numa Carta poderia antecipar uma virada de política dessa monta.

Ao mesmo tempo, Guido Mantega era o ministro do Planejamento. O desenvolvimentista Carlos Lessa dirigia o BNDES. O governo abrigava muitas contradições.

O Lula 3 também terá suas contradições. Quem quiser ver comprovada sua previsão sobre o que será o Lula 3 terá várias oportunidades nas próximas semanas —qualquer que seja sua previsão.

Assim como foi há 20 anos, os rumos do Lula 3 não estão escritos em cartas ou declarações. Aceitar essa incerteza é o primeiro passo para tentar entender os caminhos que nos esperam.

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