Só ontem o descobri, atirado atrás de uns livros e um par de luvas, o cartãozinho de visita. E logo me lembrei do agente imobiliário miúdo que veio duas vezes, querendo comprar meu sobrado para virar estacionamento.
"É... Será que chegou a hora?", pensei, entre baldes e panos de chão, enquanto tentava conter meu pânico e a água de chuva que escorria do ventilador de teto —praticamente uma ducha no meio da sala.
O arquiteto Le Corbusier dizia que toda casa é uma máquina de morar. Porém, quando tal máquina tem mais de um século, imagine os problemas que ela não dá. É por isso que quase ninguém entende por que cismo de viver num imóvel tão antigo e de beira de rua.
As confusões começam pela fachada colorida, que sempre confundem com a da casa de festas da esquina. Certa vez, tive de enxotar um palhaço muito do mal-encarado, que apareceu junto com um mágico para cobrar uma dívida. Milícia para baixinhos.
Piscina? A menos que você considere o dia em que um cano de ferro estourou no banheiro, criando uma Catarata do Niágara. Só faltou o Pica-Pau para descer num barril.
Convite à intervenção urbana, até minha porta de garagem já acordou com um "Não fui eu" escrito em letras garrafais. Achei conceitual, mas logo depois vieram "Nem eu", "Eu também não" e um imenso pênis com asinhas.
Casa velha tem disso. Que nem a gente depois dos 40, precisa de check-ups regulares. Cada martelada leva a uma expedição arqueológica própria, trazendo consigo o receio de encontrar o tataravô de alguém emparedado. E quando um amigo pergunta se tal patrimônio tem potencial para tombamento, eu peço pelamordedeus para nem dar essa ideia em voz alta. Aqui, literalmente, tudo pode acontecer.
"Arranca tudo e taca porcelanato!". "É, vem morar no meu prédio! Tem varanda gourmet". Eu poderia, mas é nessas horas que a professora da creche ao lado toca a campainha.
"E aí? Tá boa? Então: chegamos à lição dos cômodos!". Todo ano é assim. No que as crianças começam a aprender sobre o que é uma casa, sou invadida por uma nova excursão de carinhas muito curiosas. "Não tem jeito, elas pedem pra vir. Acham que é museu!".
Ao me lembrar disso, ainda passando rodo no chão, atirei convicta o cartãozinho para trás dos livros e das luvas, onde estava antes.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.