Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
Descrição de chapéu
mercado de trabalho

Filósofo tem que ser até rei da pisadinha, mas isso o LinkedIn não mostra

Em que lugar do currículo é pra botar nossas habilidades realmente especiais?

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"Senhoras e senhores, com licença. Eu poderia estar roubando, matando, mas tô aqui na humildade. Trabalhando meu engajamento e agregando novas skills ao mindset do meu job, como quem vende chiclete e caneta Bic. Quem vai? É promoção data-driven, chefia. Três por dois real."

Na minha cabeça, atualizar perfil no LinkedIn é isso. Muitos quadradinhos a ticar e campos a preencher, enquanto oferecemos nossa mão de obra por entre termos em inglês e descrições de vagas que ninguém capta plenamente. Uma sucessão de "amplie sua rede", "seduza empregadores", "impressione colegas" e "orgulhe sua mãe". Agora, existe lugar para qualificações que realmente nos digam respeito?

Na ilustração de Marcelo Martinez, em estilo cartum, um personagem coloca a língua para fora, encostando a ponta da mesma em seu próprio nariz. O gerente de RH, em sua mesa, diz: "ok, a vaga é sua!".
Ilustração publicada em 3 de abril de 2022 - Marcelo Martinez

Cada pedacinho do feed é um convite à subversão. "Atividades." Sendo sincera, eu escreveria que a principal delas é noiar. Seguida por escrever, criar um guri, encher forminhas de gelo e afofar gatos. No campo dos "interesses", sem pensar muito eu listaria memes, múmias, literatura russa e refrigerantes vagabundos, além de filmes com Benedict Cumberbatch e tutoriais para dobrar lençol de elástico.

Só que ao contrário de mim —pessoa operante no mercado de trabalho graças à audácia dos esforçados e à motivação implacável das contas a pagar—, conheço tipos muito bem sucedidos em suas áreas de atuação. Nenhum deles, porém, se sente definido pelo que faz em troca de dinheiro.

Tem filósofo que é rei da pisadinha. Ator famoso que multiplica tudo que é número de placa de carro. Psicanalista que se orgulha de botar a língua na ponta do nariz e até músico laureado com mais de um Grammy cuja vocação primordial, a seu ver, é escolher uva na feira.

Anos a fio, eu mesma chefiei 12 autores tão ou mais malucos do que eu. E certa vez, durante um workshop de liderança, perguntaram que estratégias de inovação eu usava para motivar minha equipe. Diante de gráficos em formato de pizza e funções com curvinhas pra cima e pra baixo, fui assertiva. "Quando tá puxado, eu encomendo bolo." Afinal, meu principal ativo como gestora era deixar cada um em paz para dar o seu melhor, provendo chocolate quando possível.

Profissional bom trabalha, mas também pergunta da família do outro e almoça junto. Sai a tempo de pegar filho na escola, toma cerveja com amigos, rói unha e faz fofoca no cantinho do café. Por trás de cada crachá, cada avatarzinho sorridente, tem sempre alguém querendo ser promovido a indivíduo. E se você não se identifica com este texto, tudo bem. Meu maior talento, mesmo, é assobiar alto, com dois dedos, para chamar um táxi.

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