Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Meu sonho é ver cair o presidente, mas por ora só derrubei uma moto

Algo me diz que o moço da motinha na qual eu bati não anda pela contramão, pois seu veículo é pintado da cor vermelha

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A culpa foi do meu pé esquerdo. Tanta bicicletinha de banco para derrubar sem querer, mas não. Era noite, havia chovido. Na ladeira íngreme, calhou de aquela moto estar estacionada atrás de mim. E da sola do meu sapato ter escorregado na embreagem, apesar da minha perícia em balizas.

"Precisa de ajuda? O que acont... Caraca, moça, essa moto aí é milionária!" E assim, no breve intervalo entre ela tombar e um entregador surgir, me dando uma mão, senti a alma se separar do corpo. Juntos, colocamos a dita cuja em pé e vi que estava amassada. Seu alarme tão disparado quanto meu coração.

A ilustração de Marcelo Martinez, em estilo hiper-realista, representa um câmbio manual automotivo, com a indicação das marchas. Porém, o símbolo de ré foi substituído por um ícone de uma nota de dinheiro voando, indicando o prejuízo que pode causar
Ilustração para coluna de Bia Braune de 17.out.22 - Marcelo Martinez

Peguei uma caneta na bolsa e deixei um papel preso no retrovisor. "Desculpe, dei um totó na sua moto." E acrescentei meu celular. Quando contei aos amigos no dia seguinte, o terror se instaurou sem freio. "Era moto bolsonarista?"

Antes do atual governo, eu só tinha referências clássicas sobre duas rodas. O filme "Easy Rider". A série "CHiPs". "Carangos e Motocas", da Hanna-Barbera. Mas na garupa do Bozo, instituída a prática das motociatas, ninguém mais deu grau sem suspeita de viés ideológico.

"Se o cara for bolsonarista nervoso, imagina o preju moral." "Justo na boca do segundo turno!" Uma espécie de "eu te disse, eu te disse, eu te disse."

Graças ao segurança da rua e às redes sociais, foi fácil stalkear o motoqueiro. Coisa de quem há meses silencia metade da família e evita visitar parente que cola o número 22 na porta, "que é pra bandido saber que a gente tem arma".

Busquei um avatar do Instagram com bandeirinha do Brasil. Achei foto de mãe idosa vacinada e hashtag #VivaoSUS. Retrato de mulher e filho sorridentes. Nenhuma playlist com Gusttavo Lima. Não seguia o Neymar. Alívio?

Quando a seguradora me informou que um para-lamas custava R$ 15 mil, pus na ponta do lápis quantos direitos trabalhistas do governo João Goulart (vulgo 13º salário) eu teria de empenhar. E levando em conta a reforma da Previdência do Temer, mais o valor só da pintura, concluí que poderia me aposentar aos 119 anos.

Nisso, o motoqueiro me ligou. Atendi tensa, mas ele logo perguntou se eu estava bem e disse que o seguro cobriria tudo. "Aliás, obrigado por ter sido honesta, deixando seu telefone. E por ser o telefone certo", riu.

Cada um faz o que acha justo. Meu sonho é ver cair o presidente, não derrubar o que é do outro. E já que não houve terceira via, algo me diz que o moço da motinha não anda pela contramão. Sua moto é vermelha.

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