Eu poderia sair contando sobre a lenda urbana. Ou pegar um atalho que levasse à mansão com 15 vagas na garagem. O som de antigas pistolas de remarcação de preço, em tempos de hiperinflação galopante. Pléc-pléc-pléc. No entanto, vamos do início mesmo: tudo saiu de dentro de uma mala.
Dizem que histórias começam a partir de chamados à aventura. Imagine, então, quando o chamado se dá num antiquário perfeitamente imundo –daqueles com tralhas e tesouros até o teto. Itens que já estiveram em outros lugares, fazendo parte de outras vidas. E que meu fornecedor de cacarecos sabe garimpar como ninguém.
"Olha essa belezinha. Antiga, mas nunca usada." De couro bege, forrada em seda, uma mala meio grandalhuda, totalmente de época. Útil para guardar itens que usamos pouco, talvez num topo de armário. Levo? Não levo? "Tem um cartão de visitas preso nela, reparou?" Do presidente de uma famosa rede de super e hipermercados. Intrigada, levei.
Na década de 1980, havia uma filial no meu bairro. Não se sabia o que era código de barras. As moças do caixa digitavam os valores cobrados por cada um dos produtos, entre eles alguns de primeiríssima necessidade, como carne, leite em saquinho com nata e biscoito dos Monstrinhos Creck.
Eu me daria por satisfeita só com essa terna nostalgia capitalista, mas a mala tinha extras a oferecer. Jogando o nome do sr. Presidente na internet, descobri o imóvel mais caro do Brasil. Uma casa avaliada em R$ 220 milhões, no bairro mais novela do Manoel Carlos possível. Onze mil metros quadrados de orquidário, seis suítes, sala de música e heliponto. IPTU de R$ 450 mil, mas no carnê dá para parcelar.
Impressionada que tudo aquilo coubesse numa mala, outro hiperlink narrativo –inchecável, todavia perturbador– me fez mudar de História, agora maiúscula. Afinal, toda aquela região foi o primeiro quilombo abolicionista do país. E reza a lenda que a mansão, por anos empacada num site de leilões de luxo, estaria carmicamente ligada ao desmonte histórico e à especulação imobiliária. Pedaço de bairro que hoje abriga vários indiciados pela Lava Jato.
Notebook ainda no colo, olhei para a recém-adquirida mala vazia, porém repleta. O que mais caberia ali? Fortunas arruinadas? Escândalos? Roupas atiradas da janela por amantes em fúria? Ou apenas meias e cuecas da elite? Mais perguntas, menos respostas: a aventura segue chamando, mas também a reflexão. Tanto que a mala foi para o topo do armário, até o próximo capítulo
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