Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Ser filha temporã tem implicações até no vocabulário

Desde a infância, chocava os amiguinhos ao dizer expressões do tipo 'bispar', 'chaleirar' e que 'fulano é espeto'

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Outro dia vieram dizer que, jogando meu nome no Google, a busca mais comum era sobre minha idade. "Também pudera, você só escreve sobre velharia". Pois é, na cabeça de alguns estou regulando com as tartarugas centenárias daqueles documentários do Discovery.

No cartum de Marcelo Martinez: um boneco em formato de livro acena seu chapéu para dois bonequinhos em formato de celulares, que se entreolham, confusos.
Marcelo Martinez


Sem passar pano para rugas e meu colágeno em fuga, isso não tem nada a ver com minha certidão de nascimento. Se sou anacrônica crônica, a culpa é da minha família, que deixou para ter filhos tarde. Igualzinho a hoje em dia, mas antigamente.


Minha avó gestou meu pai depois dos 40. A mãe dela idem. Todas nesse pique, a ponto de vários parentes próximos datarem —por carbono 14— do século 19. Fertilização analógica que se dava entre capítulos radiofônicos de "O Direito de Nascer", quando não havia "Succession" para maratonar.


Na prática, ser temporã tem implicações inclusive léxicas. Tipo chocar amiguinhos com expressões idosas e ininteligíveis, aprendidas em casa. "Bispar", "chaleirar", "fulano é detraquê", "beltrana é espeto". Não entendeu? "Chispa!"


Outro ponto: não contar com a paciência dos adultos, que estão no planeta há décadas demais para dar explicações. "Você reclama muito. Na minha época..." Sim, sempre já foi a época de alguém. E esse alguém sempre será mais antigo do que aqueles que já achávamos antiquíssimos.


Forma-se uma confraria de crianças de meia-idade. Viajantes do tempo aos 50 anos em cinco. Capazes de recordar esse slogan do Juscelino e fatos históricos que jamais viveram. Sem habilitação para dirigir o carro do Marty McFly, mas a bordo do Buick preto que colidiu com um bonde numa recordação repetida por um tio.


Quem chega tão depois costuma dominar a arte da escuta, tornando-se um memorialista involuntário. Sabe como era chato usar anágua, que ferro de passar tinha carvão dentro e que a filha da Selma causou, indo grávida e de biquíni ao clube, imitando Leila Diniz.


Mauricio Ferraz, pai de um grande amigo, vai fazer 93 anos. Graças a ele, sofremos pelo Maracanazo que não é lido na Wikipédia, mas ouvido de um torcedor que chorou in loco. E que não esquece a cantoria de guris que, nos anos 1930, brincavam de apregoar as mercadorias gringas chegadas ao cais do porto. "Peixe e camarrón/ peixe e camarrón / tá podre, mas tá bom!"


Todos seremos elos perdidos, compêndios ambulantes. Uma versão familiar dos homens-livro de "Fahrenheit 451". Abertos em páginas que ninguém encontrará no Google. Tesouros preciosos, indisponíveis até para o Kindle.

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