Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Na vida ou no Reino das Águas Claras, não convém dar bobeira com presente

Cacá, um dos meus primeiros chefes na televisão, era um sujeito sensacional, mas cometeu esse deslize

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Escrever para televisão é um trabalho que quita boletos com grande potencial lúdico. Quantas vezes não tive que dar o texto enquanto pedia a pata ao cãozinho Gilmar da "TV Colosso"? Ou aguardei a vez no bandejão, atrás do Louro José?

Dias comuns na firma, aquela coisa. Contudo, se há uma lição que aprendi ao longo dos anos é que —tanto na vida real, quanto no Reino das Águas Claras— não convém deixar presente dando bobeira.

Na colagem digital de Marcelo Martinez, o personagem Príncipe Escamado – da primeira versão do Sítio do Pica-pau Amarelo – está no fundo do rio, pensativo, lembrando de um bombom de chocolate. Um peixinho o observa.
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune - Folhapress

Sabe gente que ganha uma lembrancinha, mas não dá a atenção devida? Mete na bolsa sem abrir. Larga num canto, acumulando a poeira melancólica da expectativa frustrada do presenteador. Pois então. Cacá, um dos meus primeiros chefes na TV, era um sujeito sensacional —mas cometeu esse deslize.

Certo dia, um colega voltou de férias na gringa distribuindo bombons finíssimos durante a reunião de pauta. Laureado com uma caixinha exclusiva, nosso diretor foi embora ao final do expediente sem experimentar ou levar a gostosura para casa. O que, claro, partiu dois coraçõezinhos —o do meu colega e o meu.

No serão seguinte, estávamos eu e ele sozinhos. Justo naquele horário da fome quando nem o lobisomem de "Roque Santeiro" tem um pão de queijo dormido para roer. Foi então que cogitamos. "Bora pegar um dos bombons do Príncipe Escamado?"

Pausa explicativa para quem, assim como eu, não é desse tempo. Nos anos 1970, Cacá havia interpretado o maior galã ribeirinho do "Sítio do Picapau Amarelo". Sempre discreto, jamais tirava onda sobre ter sido um crush adolescente de época.

Sua caracterização tinha a forma da água: um quê de Criatura da Lagoa Negra gracinha e de Pablo do "Qual é a Música?", após uma escova de plâncton. Fazia jus à máxima: se verde já era assim, imagina maduro.

Voltando à nossa reinação. É sério que iríamos afanar um chocolate e lesar o primeiro ficante da Narizinho? Pondera daqui, escamoteia de lá, chegamos à conclusão de que não tínhamos escrúpulos. Medo, só da Cuca.

Agindo na surdina feito dois curupiras, entrávamos e saíamos da sala de Cacá com os pés virados para trás. E assim, durante semanas, fomos sistematicamente comendo um por um dos bombons.

Meses depois, eis que Cacá surge com sincera expressão de assombro e olhinhos tristes de príncipe-peixe morto. "Caramba, minha caixa de bombons tá vazia!" Silêncio na redação. "Alguém sabe o que aconteceu?"

Demos, então, a única resposta plausível. A que o fez voltar para sua sala cabisbaixo, mas perfeitamente conformado. "Cacá, foi o saci."

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