Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
Descrição de chapéu Todas

Um desvairado surto criativo abreviado pelo entrave da gentileza

No Japão, quando se encontra algo perdido por alguém, é costume deixar no lugar mais à vista possível

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Passeando pelos Jardins do Palácio Imperial de Tóquio (ai, que deleite escrever isso, como no prólogo de um livro obscuro de Agatha Christie), encontrei uma luva caída no chão.

Era preta, de couro, claramente feminina. Avulsa e solitária na ausência de seu par, mas sobretudo misteriosa. Suscitando toda sorte de perguntas por parte de uma mente delirante e ao mesmo tempo ociosa àquele momento: a minha.

A quem pertenceria? Por que foi deixada para trás? Ficou pelo caminho por distração? Ou numa tentativa frustrada de apagar indícios? E mais: quem usa luvas nos dias de hoje?

Tudo bem, era inverno. O adorno então segue justificado, principalmente numa peripécia vivida do outro lado do planeta. Fosse por aqui, no calor da Terra Brasilis, esta narrativa pularia sem escalas do gênero noir para o fantástico.

No cartum de Marcelo Martinez: uma estátua equestre com um militar montado em seu cavalo. Ele aponta para a vitória, mas em sua mão há uma colorida luva de inverno, que alguém deixou lá.
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune de 4 de março de 2024 - Folhapress

Quiçá história de terror, como no tempo em que escolas obrigavam crianças a cantar o hino e desfilar no 7 de Setembro calçando as luvas do governo militar. Uma coceira terrível que guardo na memória.

Intrigada pelos antecedentes desconhecidos da peça, reuni alguns dos maiores detetives que existem, os meus seguidores nas redes sociais, e nos lancei o desafio de inventar versões, se possível pouco ou nada realistas.

Logo começaram a brotar eletrizantes fanfics. Da prateleira policial, uma versão Marvel para o assassinato do ex-primeiro ministro Shinzo Abe. Da moda, o novo acessório-desejo para um look glam Ultraman.

E do setor de bricolagem, algo sobre paisagismo amador e uma poda lastimável, feita com as duas mãos esquerdas típicas dos atrapalhados.

Minha colaboração para a trama tinha uma ladra internacional de joias e o fatídico colar de pérolas Akoya que pertenceu à atriz Marilyn Monroe.

Invencionice beirando o crível, posto que dias depois encontrei outra luva no mesmo quarteirão da famosa joalheria que produziu tal tesouro.

Sherlock Holmes, Miss Marple, Charlie Chan e Padre Brown se orgulhariam da minha sagacidade. Não fosse por Yoshiaki, meu amigo japonês que elucidou tudo. No Japão, quando se encontra algo perdido por alguém, é costume deixar no lugar mais à vista possível. O que acontece bastante com, errr, luvas.

Ou seja: nosso desvairado surto criativo foi abreviado por esse diminuto, delicado e brutal detalhe, também conhecido como "gentileza". Fim.

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