Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
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Pulseirinhas RIP VIP dividem os velórios entre geral, camarote e céu premium

Meu pai, meu irmão e eu achamos injusto aquele abismo, a sete palmos do destino comum

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Detesto defunto sem flor. De-tes-to. E sim, sei que tem religião que nem permite. Falecido que nunca quis. Preço de buquê pela hora da morte. Ora, quem sou eu para julgar festejos mortuários alheios, mas... Adeus final sem perfume de pétalas murchas e letras douradas soletrando "SAUDADES" com Durex me parte o coração.

Certa vez, meu irmão enviou uma coroa enorme a um vizinho que só conhecíamos de "bom dia". Mandou botar na faixa: "Para seu Torquato, da amiguinha Tara". No caso, a vira-lata da família que o finado amava acariciar todas as manhãs.

No cartum de Marcelo Martinez: uma grande coroa de flores. Ao centro da imagem, duas abelhinhas. Uma delas, vestida como viúva, agradece, consternada: "Obrigado pelas flores, ele adorava.
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune de 12 de agosto de 2024 - Marcelo Martinez/Folhapress

No mais recente enterro com ida obrigatória ao florista, recordei o velório que deu origem à minha convicção. Alinhamento de personagens distintos, mas com o suficiente em comum para surgirem mortos no mesmo dia e em capelas contíguas do mesmo cemitério: Seu Lins, Tia Lêda e o Sem Nada.

O primeiro era um senhorzinho encantador da escola de samba Lins Imperial. Infelizmente só o conheci ali, após abotoar o paletó de madeira. De chapéu panamá e sapato branco, glorioso, fazendo jus ao verso "um grande artista tem que estar tranchã". A multidão lhe chorando refrães e gargalhando causos, enquanto carpideiras de peruca e vestido brilhoso honravam sua velha guarda.

Tia Lêda estava simplesinha e a uma parede de distância, velada por um público a ser considerado "médio". Já tinha enterrado a maioria dos amigos e parentes colaterais, então sobrou o bastante. Nem muita gente, nem pouca.

Vira e mexe alguém relembrava uma mania chata, como a de nunca nos deixar misturar manga com leite, mas logo depois meu pai puxava um coro de elogios à sua inesquecível queijadinha. Aos bobes de cabelo que ela me permitia transformar em barricadas para Barbies desprovidas de príncipes, tal como ela.

E ao fim do corredor, o Sem Nada. Semblante escurecido pelo óbito e iluminando pela luz fria. Supostas viúva e filha de pé, com as bolsas ainda no ombro apesar das cadeiras todas vagas. O observando com a dor e o alívio de quem se vê diante de uma criatura que, morta ou não, talvez nem fizesse diferença em suas vidas.

Meu pai, meu irmão e eu achamos injusto aquele abismo, a sete palmos do destino comum. Como se pulseirinhas RIP VIP tivessem sido distribuídas, dividindo os setores da morte em geral, camarote e céu premium. Era preciso agir.

Enquanto um afanava uma rosa de Seu Lins, outro pegava emprestado um crisântemo de Tia Lêda. Papai, com a devida licença, colocando o simplório arranjo sobre o peito do Sem Nada. Sacumé, equilibrando carmas. Ninguém soltando a alça do caixão de ninguém.

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