Bianca Santana

Doutora em ciência da informação, mestra em educação e jornalista. Autora de "Quando me Descobri Negra"

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Até um dia, Roya. Rest in power, minha irmã

As meninas e mulheres são as mais vulneráveis na guerra no Sudão

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"Tudo o que sei sobre a dificuldade de sustentar a democracia no Brasil é tão parecido com o que enfrentamos no Sudão", disse Roya Hassan, comunicadora feminista sudanesa em um café da manhã em Naivasha, no Quênia. Aos 32 anos, Roya estava sempre sorrindo. Caminhava apoiada em uma bengala, decorrência da esclerose múltipla, e era uma referência em língua árabe por popularizar teorias feministas no podcast Ta Marbouta. Tinha vontade de conhecer Petra Costa para conversar sobre "Democracia em Vertigem". Quem sabe, depois do podcast, não experimentaria o audiovisual. O objetivo de Roya era que mais pessoas compreendessem as relações de poder para um dia ser possível compartilhá-lo, em vez de disputá-lo.

Três mulheres estão sentadas no chão de terra, próximas a uma parede de tijolos, preparando alimentos. Elas estão vestidas com roupas coloridas e cobertas com véus. Uma delas está mexendo em um balde branco, enquanto as outras duas estão ocupadas com outros recipientes e utensílios. Há uma cama de madeira e corda ao fundo, à esquerda.
Mulheres voluntárias sudanesas cozinham kisra, um pão de sorgo, para famílias deslocadas na cidade de Omdurman, no Sudão - Mohamed Khidir - 24.jun.2024/Xinhua

Dia 15 de abril de 2023, as Forças de Suporte Rápidas (RSF) atacaram bases das Forças Armadas Sudanesas (SAF) e uma nova guerra começou no Sudão. Guerra profundamente conectada à exploração econômica colonial, que definiu fronteiras arbitrariamente, promoveu disputas entre etnias e estimulou governos autoritários. Escrevi para Roya perguntando se ela estava bem, mas ela nunca me respondeu no WhatsApp. Soube, pelas companheiras do Black Feminist Fund, que Roya precisou se refugiar em uma pequena aldeia sem água nem eletricidade a cerca de 500 km de Cartum, capital do país. Foi infectada por malária e, sem acesso a medicamentos e tratamento adequado, morreu no dia 2 de junho de 2023, menos de dois meses depois do início da guerra. Sua família recebeu a notícia dias depois.

No último 13 de junho, o Conselho de Segurança da ONU adotou uma resolução exigindo o fim imediato dos combates, alertando para o risco de uma possível escalada no conflito. Com abstenção da Rússia, o pedido de cessar fogo foi aprovado por 14 votos, e também exigiu que militares garantissem a proteção de civis, permitindo o deslocamento de pessoas e a chegada de ajuda humanitária. Das poucas organizações internacionais ainda presentes no Sudão, a Médicos Sem Fronteiras publicou nota dia 24 de junho constatando que a resolução da ONU falhou: hospitais continuam sendo atacados e nenhuma ajuda humanitária externa tem chegado às regiões de bombardeio.

Mais de 16.650 pessoas morreram desde o início da guerra. E hoje o Sudão tem o maior número de deslocados internos do mundo: mais de 11 milhões de pessoas, um a cada cinco habitantes. Segundo a ONU, 25,6 milhões de pessoas passam fome, com mais de 750.000 em níveis catastróficos de insegurança alimentar. As meninas e mulheres são as mais vulneráveis. Além da falta de comida, água, medicamentos, são vítimas de estupros.

Roya Hassan espalhava amor e acolhimento ao se colocar como voz importante nas denúncias de violência sexual e do absurdo código penal sudanês, que impõe chicotadas a mulheres vestidas de forma considerada indecente. Também promovia rodas de conversa e fóruns de debate sobre política e economia, denunciava o colonialismo e trabalhava em benefício de pessoas com deficiência, como ela. Expandir a solidariedade entre mulheres no Sul Global era visto por Roya como estratégia para melhorar a vida das sudanesas. Assim como é importante para nós, brasileiras, nos unirmos em solidariedade ao Sudão. Que a guerra invisível —em que corpos negros são vitimados— também mereça nossa atenção.

Até um dia, Roya. Rest in power, minha irmã.

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