Candido Bracher

Administrador de Empresas formado pela FGV. Foi executivo do setor financeiro por 40 anos.

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Candido Bracher
Descrição de chapéu Oscar 2024

A opressão do 'espírito do tempo'

Uma história de dois escritores que se rebelaram contra a 'má caricatura de si mesmos'

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Foi no início da minha adolescência que minha mãe, com sua didática habitual, explicou-me o sentido da expressão "o espírito do tempo". Naquele princípio dos anos 1970, a expressão —que soava ainda mais sedutora na sua forma original alemã, "Zeitgeist"— pareceu-me não apenas fascinante mas também acolhedora e benevolente.

Afinal, aos meus olhos, o ambiente intelectual, cultural e moral da época era dominado pela oposição à ditadura, pelas canções de protesto de Geraldo Vandré e Chico Buarque, pela Tropicália e ainda —algo paradoxalmente— por uma ideia de Brasil destinado à grandeza. Eu era capaz de identificar-me com todas essas manifestações e sentia-me assim perfeitamente integrado ao espírito do meu tempo.

A ilustração de Luciano Salles, publicada na Folha de São Paulo no dia 21 de abril de 2024, mostra a escultura de um rosto fixado em uma parede de pedra. A cabeça e a parede é de cor bege. A cabeça de pedra está de perfil e está fazendo uma bola de chiclete da cor rosa
Luciano Salles/Folhapress

Mais tarde, quando os tempos evoluíram para a anistia, a volta dos exilados, livros como "O que é isso, Companheiro?", de Fernando Gabeira, a abertura democrática e o movimento das Diretas Já, renovei o meu sentimento de conformidade com as ideias contemporâneas.

Acredito que essas "primeiras impressões" cristalizaram em minha mente o conceito, não revisitado, do "espírito do tempo" como algo estruturalmente positivo.

O excelente filme "Ficção Americana", ganhador do Oscar de melhor roteiro adaptado, traz à tona o caráter opressivo de que o espírito do tempo pode se revestir, para aqueles cuja produção intelectual não siga seus ditames.

Parêntese: não considero eventuais spoilers muito prejudiciais neste caso, seja porque não se trata de um thriller com grandes suspenses e surpresas, seja porque o aspecto que abordo, embora central, é apenas o invólucro do multifacetado drama humano, que o filme retrata com grande sensibilidade.

Thelonious Elisson, "Monk", é um escritor negro de meia-idade, cujos livros de tendência acadêmica e erudita encontram pouca receptividade no público. Sua origem privilegiada fica evidente pela espaçosa casa de sua família e por ter estudado em Harvard, como se deduz de uma flâmula na parede de seu quarto

Cena do filme 'Ficção Americana', de Cord Jefferson
Cena do filme 'Ficção Americana', de Cord Jefferson - Divulgação

Em meio às dificuldades para editar seu livro mais recente, depara-se em uma feira literária com o estrondoso êxito de uma escritora iniciante, como ele negra e privilegiada, cujo livro, "Nóis Mora no Gueto", repleto de clichês, denuncia a desigualdade racial.

Furioso com a rejeição ao seu trabalho, escreve, sob pseudônimo e impulsivamente, um romance banal, com o mesmo cunho racial, levando ao paroxismo o uso de lugares-comuns e situações previsíveis.

Nesse ponto do filme tive a sensação clara de que a arte imitava a vida, ao me lembrar do escritor francês Romain Gary.

Gary, judeu nascido no império russo em 1914, emigrou com sua mãe para Nice aos 14 anos de idade e lá, enfrentando todos os preconceitos reservados aos imigrantes, em geral, e aos judeus, em particular, tornou-se aviador e, após a rendição, em 1940, juntou-se à "France Libre" do general De Gaulle. Foi durante a guerra, nos intervalos de suas missões em aviões bombardeiros, que escreveu seu primeiro romance de sucesso: "Educação Europeia", ambientado no movimento de resistência polonês.

Tornando-se diplomata após a guerra, manteve sua produção literária, chegando a ganhar o maior prêmio da literatura francesa, o Goncourt, em 1956, com o livro "Raízes do Céu", considerado por muitos o primeiro romance ecológico da história contemporânea.

 escritor Romain Gary (1914-1980), vencedor do Goncourt (maior prêmio da literatura francesa) de 1956 por "Raízes do Céu", chega ao aeroporto de Orly com sua mulher, Lesley Blanch
O escritor Romain Gary (1914-1980), vencedor do Goncourt (maior prêmio da literatura francesa) de 1956 por "Raízes do Céu", chega ao aeroporto de Orly com sua mulher, Lesley Blanch - 13.dez.56/AFP

Esse êxito, no entanto, não o protegeu da agressividade dos críticos. Quinze anos e vários livros depois — entre os quais o belíssimo "Promessa ao Amanhecer"—, Gary era atacado por todos os lados.

A direita, lembrando sempre sua condição de estrangeiro e judeu, insistia que seu francês era medíocre, chegando mesmo a alimentar o boato de que seus editores haviam contratado secretamente Albert Camus, para corrigir o manuscrito de "Raízes do Céu".

Já a esquerda, que domina a cena cultural da época, o condena por considerá-lo ligado ao poder gaulista. Essa postura ainda se agravaria após as críticas de Gary ao "nouveau roman", estilo dominante na época, em um livro publicado em 1965 ("Pour Sganarelle").

É nesse ponto que as histórias de Monk e Gary se sobrepõem. Assim como o americano, Gary começa a escrever sob o pseudônimo de Emil Ajar, sem, contudo, abandonar a produção sob seu próprio nome.

Uma cena do filme transmite com clareza o dilema de Monk. Ele entra em uma grande livraria e pergunta se há livros de Thelonius Elisson, seu nome verdadeiro. O atendente, após consultar uma lista, leva-o à estante onde estão os seus livros; Monk olha para a placa de designação que diz "estudos afro-americanos". Furioso, tenta carregar seus livros para uma estante que reflita adequadamente seu conteúdo.

A cena deixa claro que o "lugar de fala" de Monk está restrito à sua negritude e aos temas ditados pelo espírito do nosso tempo.

Da mesma forma, Gary, em seu livro póstumo "Vida e Morte de Emil Ajar", no qual revela a identidade do autor, atribui a iniciativa de escrever sob pseudônimo à "má caricatura de si, que lhe haviam feito" ("la gueule qu’on lui avait faite"). A única forma de livrar-se do espectro de "escritor em fim de percurso" seria forjar-se uma nova imagem.

As semelhanças não param aí. A banca de avaliação do Goncourt, ignorando a real identidade de Emil Ajar, concede o prêmio de 1975 ao seu "A Vida pela Frente", tornando Gary o único escritor a ter ganho o prêmio duas vezes, situação vedada pelas regras do concurso.

Do mesmo modo, o livro "Fuck" (isso mesmo!), de Monk, previsivelmente vence um importante concurso literário.

O que diferencia as duas histórias é que, enquanto Monk despreza o livro escrito sob pseudônimo, Gary orgulhava-se por ter elaborado uma escrita mais leve e livre, embora as ideias centrais e mesmo algumas expressões características sejam as mesmas de seus livros autorais.

Quase 40 anos após seu suicídio, em 1980, a obra de Gary foi incluída na "Pléiade" da editora Gallimard, o panteão dos escritores franceses.

Para as obras dos autores aclamados em vida, resta sempre o desafio de resistir à evolução do espírito do tempo. Já para alguns —muito poucos— dos autores que não têm a mesma sorte, é justamente essa evolução que permite o reconhecimento pleno de sua qualidade.

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