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Livro 'As Pipas' joga luz sobre banalidades de quem viveu nazismo

Romain Gary resgata memórias do antissemitismo, da indiferença e dos privilégios do período

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Beatriz Resende

É professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro

As Pipas

  • Preço R$ 74,90 (336 págs.); R$ 54,90 (ebook)
  • Autor Romain Gary
  • Editora Todavia
  • Tradução Julia da Rosa Simões

O escritor francês Romain Gary foi personagem de curioso caso de burla no sistema de premiação de obras literárias ao receber, pela segunda vez, o importante prêmio Goncourt, atribuível apenas uma vez.

Concorrendo sob o pseudônimo, iludiu o júri que não reconhecera a escrita do autor com mais de 30 livros publicados. Escritor, diplomata, aviador, herói de guerra, foi, ele mesmo, figura digna de seus mais emocionantes relatos.

Ao romance "As Pipas", de 1980, sua última obra publicada em vida, muitas de suas experiências são incorporadas –o período de vida na Polônia, a condição de judeu durante a ocupação da França pelos nazistas, a participação junto às forças da resistência.

Não são heróis, porém, que interessam na narrativa fascinante, bem ao contrário. É o cotidiano dos que lutam por sobreviver, as incontroláveis paixões dos jovens, a revolta dos pacifistas que viveram a Primeira Guerra, a humilhação do francês médio que convive com os alemães, que ocupam a narrativa.

Na pequena cidade da Normandia estão Fleury, carteiro meio lunático, fabricante de pipas; Duprat, dono de um restaurante três estrelas; jovens poloneses que esbanjavam riqueza enquanto podiam e Ludo, que ajudava o pacífico tio com suas pipas.

Não interessa De Gaulle, mas sim os homens comuns que morrem em combate, nem o general Pétain, mas os soldados da Gestapo que transitam pela pequena Cléry de forma ostensiva e ameaçadora. São pequenas traições e valentias efêmeras.

É em Ludo que se concentra a importante metáfora do livro, trazendo a obra do século passado para hoje, nos comovendo e servindo de alerta. O órfão de guerra é dotado de incrível memória, capaz de fazer contas infindáveis ou recitar poemas de cor. Nunca se esquece de nada.

Durante a ocupação era preciso preservar a lembrança de pensadores e escritores franceses transformados em pipas que se erguem ao céu, assim como guardar receitas de pratos como o boudin de ostras. “Sempre haverá uma França no Guia Michelin.”

Em julho de 1942, chega a eles a pior notícia do colaboracionismo francês, quando, no evento do velódromo de inverno, entregam judeus de Paris, homens, mulheres e crianças para serem levados ao campo de extermínio de Auschwitz. O cozinheiro informa ao carteiro, com um soco na mesa. “E as crianças também. Eles entregaram as crianças também. Nunca mais as veremos com vida.”

Pessoas andando em vila polonesa
Portão de entrada do campo de concentração em Oswiecim (Auschwitz), município polonês, com a inscrição ‘o trabalho liberta’ - Janek Skarzynski/AFP

Ao final da guerra, Ludo, que carregara o amor vivido na memória, em quase delírio, endureceu nos combates. “O que há de terrível no nazismo, dizem, é seu lado desumano. Sim. Mas é preciso render-se ao óbvio: esse lado desumano faz parte do humano. Enquanto não reconhecermos que a desumanidade é uma coisa humana, permaneceremos na mentira piedosa.”

Os aliados chegam a Cléry mas não é fácil retomar a vida entre os que sobreviveram em lados opostos. As memórias da guerra são também memórias do antissemitismo, da indiferença, dos privilégios mantidos pelos aristocratas e banqueiros. Mais fácil esquecer.

Em 2012, a comovente exposição “C’Étaient des Enfants", em Paris, exibiu o resultado de 15 anos de pesquisas e depoimentos sobre a violência no Vel’Ivi ,70 anos antes. Desenhos, cartas, roupas de crianças nos campos nazistas lembravam as 4.000 enviadas para a morte.

Sobreviveram alguns resgatados pelos russos e os pequenos judeus que escaparam graças à ajuda de gente simples que os acolheu –uma concièrge, a bilheteira de metrô, um desconhecido. Como personagens de "As Pipas", exemplos da banalidade do bem.

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