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Arthur Grohs

Ler Camus é desafiar o vazio da condição humana

Um dos pensadores mais marcantes do século 20, ele completaria 110 anos

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Arthur Grohs

Formado em jornalismo, é mestre e doutorando em comunicação pela PUC-RS

[RESUMO] Filósofo, escritor, Nobel de Literatura, o franco-argelino Albert Camus, em sua curta vida, deixou marcas profundas na cultura do século 20. Rebelando-se contra dogmas e o absurdo da vida, o pensador, nascido há 110 anos, procurava dar contorno moral a um mundo desprovido de moralidade.

O cigarro na boca compunha o retrato de um rosto com olheiras. Sobre elas, uma testa alongada em virtude das profundas entradas no cabelo. Em preto e branco, esses elementos integravam um semblante conhecido, que marcou a cultura do século 20.

Nascido em uma pequena cidade na Argélia, Albert Camus (1913-1960) foi, ao mesmo tempo, agraciado e desventurado pelo acaso. Escritor, filósofo, prêmio Nobel de Literatura, ele completaria 110 anos nesta terça (7/11).

O escritor Albert Camus - Reprodução

Trocou a vida pela morte ao trocar uma passagem de trem, guardada no bolso de seu casaco, pelo banco carona de um Facel-Vega FV2. Na estrada, o carro colidiu com uma árvore. Morria, aos 46 anos, aquele que foi descrito por Hannah Arendt como "o maior homem na França". Curiosamente, o pensador dedicou parte significativa de sua obra a refletir sobre o absurdo e o acaso.

Garoto, Camus viu a sorte lhe sorrir graças ao professor do primário, que lhe conseguiu uma bolsa de estudos em um liceu de Argel —onde estava radicado com a mãe, uma faxineira analfabeta e parcialmente surda, o irmão e a avó, desde a morte do pai, em combate na 1ª Guerra Mundial.

Recorreu ao esporte, à literatura e ao teatro como seu porto seguro. A tuberculose o afastou do futebol e negou, anos mais tarde, seu ingresso na docência superior. Influenciado principalmente pelo russo Fiódor Dostoiévski, percebeu que queria ser escritor. Enveredou-se rumo ao jornalismo, a plataforma histórica aos que aspiravam a carreira literária.

Em pouco tempo, percebeu-se realizado. Vivia o êxtase da emancipação, do pensamento livre. Com passagem notável pelo Alger Républicain, importante veículo de esquerda, não comunista, na Argélia, atuou como repórter.

Desempenhou o que hoje se chama de "jornalismo investigativo". Ao se apropriar, também, da crônica judiciária, denunciou o expediente de brutalidades sob o qual a população argelina, sobretudo as parcelas de origem árabe e berbere, estava submetida pelo regime colonial francês. Até esse ponto, todavia, o jovem Camus passou por diversos outros empregos, que possibilitaram a conclusão da faculdade de filosofia.

Os leitores de "A Morte Feliz" estarão familiarizados com o fato de Camus ter trabalhado, por exemplo, como vendedor de peças de reposição, em um escritório meteorológico e em uma empresa de expedição. O ambiente monótono e burocrático consta nas páginas do romance abortado, publicado postumamente.

Em certo sentido, Camus foi "um homem comum" por boa parte de sua vida. Isso, definitivamente, moldou sua experiência de maneira diferente daqueles que viriam a ser seus contemporâneos, durante sua estadia na França.

Entendia, desde cedo, que era necessário compreender a patética condição humana diante do mundo. Uma vez que este é, intrinsecamente, despido de sentido, a tarefa que recai sobre o colo de todo e qualquer sujeito é desafiar o vazio que circunda a existência a uma queda de braços. Encontrar propósito naquilo que é, por natureza, desprovido de propósito. Tal qual ele fez dos trabalhos burocráticos uma esteira para os estudos, fez do jornalismo o meio de intervir no debate público.

Em menos de dois anos na França, resultado de um exílio forçado, Camus publicaria "O Estrangeiro" (1942), chamando a atenção da intelectualidade da margem esquerda do Sena. Recebeu, nesse período, o convite para liderar a redação de Combat, órgão da imprensa resistente à invasão nazista na França.

Eis seu segundo auge jornalístico, agora como articulista e editorialista, cujo momento era partilhado com sua ascensão no mundo das letras. O sucesso do primeiro romance publicado foi seguido pelo de seu subsequente, "A Peste" (1947). Como consequência, Camus passaria a gozar do status no meio intelectual.

Em seguida, deixou o Combat. Investiu-se mais no teatro e na finalização de sua obra maldita, "O Homem Revoltado" (1951). Sem poupar críticas à União Soviética e ao seu líder Josef Stálin, o ensaio filosófico em questão germinou a fúria dos comunistas franceses. Selou, um ano mais tarde, o fim da amizade com um dos líderes desse grupo, o outro grande nome dessa geração, Jean-Paul Sartre.

Da disputa, o francês saiu vencedor sobre o argelino. Camus, simbolicamente derrotado, teve livros retirados de apostilas e, em certo sentido, exilou-se da vida pública, dedicando-se mais a outras atividades. Retornou ao romance apenas em 1956, com "A Queda", e, no ano seguinte, foi laureado com o Nobel de Literatura.

Há muito mais a dizer sobre sua biografia; o esboçado aqui tem somente o propósito de situar os leitores nos capítulos dessa cronologia. A questão a ser ressaltada é que Camus foi um pensador arguto da condição humana e a moral.

Não aceitava passivamente que os intelectuais de sua época justificassem, por exemplo, os fuzilamentos stalinistas. Por meio de seus escritos jornalísticos, filosóficos e literários, não deixa escapar a contradição da chamada "justiça dos homens", que procurou sempre questionar por diferentes meios.

Pode-se notar, por exemplo, a alegoria que é o julgamento de Meursault, protagonista de "O Estrangeiro". Preso por matar um árabe, o personagem foi condenado menos pelo crime e mais por sua indiferença —ao assassinato e ao ideário manifestado pelo juiz.

Além disso, Camus não manifestou remorso pelas causas perdidas da moralidade que defendia. Reforçou, ao contrário, a necessidade de se relacionar com os infortúnios de seu tempo.

Dizia ele: "O escritor que permite a ele mesmo estar fascinado pelo gorgon político está, sem dúvida, cometendo um erro. Mas é também um erro passar sobre os problemas sociais de nosso tempo em silêncio… Além disso, seria um tanto quanto inútil fugir deles: você vira as costas ao gorgon e ele começa a se mover".

Nessa entrevista, publicada em maio de 1951, afirmou que o propósito do artista seria, para a maioria, "retratar as paixões do amor"; contudo, aos seus olhos, "as paixões de nosso século são paixões coletivas, porque a sociedade está em desordem".

Camus, por óbvio, falava dentro de um contexto diferente. Filho da 1ª Guerra e testemunha ocular da seguinte, era um escritor que destilava suas palavras em um cenário despojado de fundações morais. O arrivismo imperava na ordem do dia.

Tudo valia em nome de um ideal, o que mais ou menos se manteve durante a Guerra Fria. Ele era interlocutor de uma sociedade estilhaçada e fragmentada. Crê-se que, por isso, argumentou que "otimismo confortável, com certeza, parece uma piada ruim no mundo de hoje".

O legado do autor superou a tentativa forçada de prostração. "O Estrangeiro" é uma das obras mais lidas na tradição francófona. Com a pandemia, "A Peste" entrou para as listas dos mais vendidos. Para além do estereótipo de superação, trata-se de um autor que procurava formular fundamentações morais, em escala individual e coletiva, em tempos em que a moralidade era apenas um recurso retórico.

Ler Camus é se deparar com um autor que, afora todos os pontos abordados, expressava seu deslumbre com os aromas cintilantes da flora e do mar de sua Argélia natal.

Também é conhecer um escritor que não esconde de seus interlocutores a obscuridade que a experiência humana carrega. No entanto, fazia questão de lembrar que há muito a ser celebrado na vida: "Há somente má sorte em não ser amado, mas há desgraça em não amar".

Recorrer a Camus, hoje, é mergulhar de cabeça nas nuances e contradições do humano que existe dentro de nós, debaixo do sol que nos submete ao mesmo destino final.

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