Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso

Por causa de uma mulher, decidi trabalhar na empresa onde me tornei presidente

Tinha resolvido ir embora e chamei o elevador; quando a porta abriu, ela estava lá dentro

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Osvaldo Alvarenga

Mora em Portugal, autor de "Santos e Sardinhas: Lisboa em crônicas"

Esta história é do tempo em que "Pais e Filhos" tocava nas rádios e "Lullaby" era o clipe de maior sucesso nas MTVs mundo afora. Eu, aos 23, recém-chegado da Europa, de uma tentativa frustrada de ir à Índia para viver junto ao mestre, num ashram, em Poona; aventura em que gastei o pouco dinheiro que poupei e, quebrado, tive de voltar para a casa da mãe.

Difícil regresso. Fracassado e deprimido, precisava trabalhar. Naquela época, quem não tinha padrinho procurava emprego nos classificados dos jornais.

Num domingo à tarde, abro o maior jornal de Belo Horizonte e procuro, não nos grandes anúncios, porque, não tendo formação, dificilmente encontraria ali uma vaga condizente com a minha situação; tampouco nos pequenos, porque sobravam porcarias e eu contava não ter de ir tão baixo.

Separei três, todos genéricos o suficiente para me encaixar. Exigiam “boa apresentação”, “formação superior” e “fluência verbal”. Vendas, só pode!

Na segunda-feira, início da tarde, barba feita, gel nos cabelos escuros e fartos, camisa e calça social, chego ao endereço do primeiro anúncio, na Savassi, bairro na região centro-sul da cidade. O prédio descuidado causa má impressão. Atravesso a portaria vazia e pego o elevador. Quando a porta volta a se abrir, vejo um corredor exíguo, à esquerda o vão das escadas e à direita uma única porta; estava aberta.

Com um passo largo alcanço a entrada. Um balcão me impede a passagem. Olho para dentro da sala. Não vejo fila de espera. Estranho. São quatro mesas, três moças e um rapaz concentrados no que faziam. Silêncio sepulcral.

“É daqui o anúncio de emprego?”, pergunto.

“É! Espera aí”, responde seco a moça da mesa mais próxima. Era bonita. Tez morena, bem maquiada, sem exagero, cabelos castanhos, soltos, até os ombros, vestia, acho, um tailleur azul claro.

Observo o lugar. Divisórias baratas, branco encardido, à volta daquele espaço central. Um carpete fino e surrado, cinza, cobre o chão. Três portas fechadas a indicar que havia mais qualquer coisa além. Sobre as mesas das moças, máquinas de escrever e telefones. Do lado esquerdo, próximo às janelas, sobre o longo balcão, um microcomputador; equipamento caro e raro. Concluo que a empresa não deve ser de todo ordinária. Decido ficar.

“Preenche esta ficha”, diz outra moça, que saiu da sua mesa ao fundo para me entregar o papel. Batom, camiseta branca, calça jeans e tênis branco, tipo Conga. Completamente informal, o oposto da primeira. Na ficha, dados cadastrais, formação e experiência. Escrevo que sou formado em ciências sociais. Mentira, mas, afinal, quem sabe dizer o que faz um cientista social?

Chamo e a mesma moça vem buscar o papel. Entrego imaginando que seria convidado a entrar. Qual o quê! Outro “espera aí”. Permaneço de pé no meu cubículo. Lá dentro, o silêncio era, às vezes, quebrado pelo som das máquinas de escrever ou pelo ruído da impressora, uma Elgin já bem usada, ao lado do computador. Os telefones tocam nas três mesas. “SCI, boa tarde”, atende a moça da terceira mesa. Mal a vejo. Ouço a conversa.

O tempo foi passando, e eu ainda precisava responder a dois outros anúncios. Não fosse na segunda, na terça já não recebiam, era a prática. Teria de esperar mais uma semana.

“Vai demorar?”, pergunto.

“Já vai, espera aí!”, ela me diz.

Espero um pouco. Pergunto outra vez mais. A resposta é a mesma. Decido ir embora. Chamo o elevador. Quando a porta se abre, lá dentro, uma moça muito branca, cabelos negros, corte Chanel, olhos castanhos e amendoados, vários brinquinhos prata de argola numa orelha, camiseta preta de malha, jaqueta e saia, parecendo couro, pretas também, vem na minha direção. A saia está bastante acima dos joelhos, meia-calça escura e botas de cano baixo; pretas, lógico! A moça sorri insinuante. Tem lábios vermelhos…

“Oooi!”, ela diz.

“Oi!”, digo eu.

“Você trabalha aqui?”, ela questiona.

“Não. E você?”, retruco.

“Eu trabalho”, fala sorrindo, enquanto passa por mim e deixa o seu perfume. Levanta o balcão e segue sala adentro. Caminha em direção à porta da frente sem nunca olhar para trás. “Também vou trabalhar aqui”, pensei enquanto observava o balanço do seu corpo.

Permaneço de pé, no corredor, por não sei mais quanto tempo. Bem depois, volta o elevador trazendo um cara. Ele tem a minha idade ou pouco mais. Terno, gravata e algum desleixo. Quase sorrindo, faz um aceno com a sobrancelha e segue para uma das salas à direita.

A moça de jeans, lépida, vai atrás. Leva a minha ficha e, na volta, faz sinal para eu entrar. Depois das mesuras de praxe, ele, filho de emigrantes transmontanos, observa a minha experiência profissional em Lisboa, que eu nunca tive e que foi para o papel porque ninguém ali jamais teria como confirmar. A nossa conversa não foi outra senão a minha maravilhosa viagem pela Europa.

Fui contratado. Vendas, óbvio! Trabalhei por 18 anos naquela empresa, cresci junto com ela, que anos depois foi comprada pela Equifax, uma multinacional americana. De vendedor em Belo Horizonte a diretor-presidente em São Paulo. Tudo porque, um dia, aquela moça sorriu para mim ao sair do elevador.

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