Cecilia Machado

Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

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Cecilia Machado

Desigualdade de acesso

Se prática é usual e acesso, privilegiado, restrição a aborto amplifica desigualdades

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Argumentos pró e contra o aborto eletivo gravitam em torno de duas questões: de um lado, o direito de escolha da mulher; do outro, o direito à vida do feto. Mas o limiar do crime —o estágio gestacional a partir do qual o aborto é punido— não tem resposta exata pois pondera o valor relativo destes dois direitos em determinado tempo e sociedade. De forma não surpreendente, existe bastante variação entre os países sobre o momento gestacional a partir do qual o aborto eletivo é considerado um crime.

No Brasil, o limite estabelecido é zero, sendo tolerado em três situações bastante específicas: quando há violência sexual contra a mulher, quando o feto é anencéfalo e quando a gravidez representa risco de vida para própria gestante.

Nas mãos do STF (Supremo Tribunal Federal), mas sem data para julgamento, está ação que pretende expandir o acesso ao aborto para gestações até a 12ª semana, independentemente do motivo, o que tornaria o Brasil mais próximo da regra que é adotada na maioria dos países desenvolvidos, entre eles os Estados Unidos, o Canadá, a Alemanha, a Suécia, a Noruega, a Austrália e a África do Sul.

O aspecto criminal do aborto envolve inevitavelmente questões éticas e polêmicas, mas a atuação do Estado nesta questão também deve levar em consideração efeitos indiretos para a sociedade que a restrição ao aborto pode causar. 

Se a interrupção da gestação for relevante e aceitável para muitas mulheres, o mercado ilegal vai existir. A proibição do uso de drogas não elimina o tráfico e as organizações criminosas, e o mesmo acontece no caso do aborto. Entretanto, a incidência do fenômeno e a quem o mercado ilegal atende são de difícil mensuração.

No Brasil, os números estimados estão sujeitos a diversas críticas, mas a existência de um mercado ilegal para o aborto parece ser real.

Há estimativas, possivelmente infladas, de em torno de 1 milhão de abortos ilegais por ano, considerando 200 mil internações por abortamento no Serviço de Internações Hospitalares e que 20% dos abortos resultam em internações.

A título de comparação, nos EUA, onde o aborto eletivo é permitido, ocorreram 638.169 abortos em 2015. Já as pesquisas amostrais, como a Pesquisa Nacional de Saúde e a Pesquisa Nacional do Aborto, sujeitas a subnotificação, estimam a incidência de aborto entre mulheres de 18 a 49 anos em 2 a 13%.

Em todo mercado ilegal, o aspecto criminal inviabiliza a tutela e fiscalização do Estado sobre a qualidade do produto ou serviço em questão, além de aumentar o preço de acesso. Assim, as restrições ao aborto eletivo geram dois efeitos não desejáveis. Se de um lado podem inibir a realização do procedimento, por outro o tornam mais arriscado, com consequências para saúde da mulher, além de custos para o sistema de saúde.

O segundo efeito é a desigualdade de acesso, por renda ou raça, por exemplo. O acesso para a mulher pobre é muito mais difícil do que o acesso para uma mulher de renda alta, tanto pelo custo, pela informação e pelo rápido acesso a assistência após o abortamento.

Se a preferência pelo aborto eletivo é justamente para as mulheres de baixa renda, a restrição de acesso atua como lente amplificadora de desigualdades. O aborto eletivo está longe de ser uma saída eficaz para uma gravidez indesejada, mas é importante considerar o contexto brasileiro de falta de informação, dificuldade de acesso e uso de métodos anticoncepcionais.

Além de julgamentos éticos ou criminais, a discussão sobre a legalização do aborto deve considerar como restrições de acesso geram desigualdades em saúde e renda, com impactos reais sobre a nossa economia.

Se a prática é usual, e o acesso é privilegiado, a restrição ao aborto amplifica desigualdades.

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