Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

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Charles M. Blow

Trump estimulou distorções no sistema político dos EUA que vão durar muito tempo

Para muitos seguidores do ex-presidente, a mentira é a verdade absoluta

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The New York Times

Uma das afirmações mais graves contidas no discurso do presidente Joe Biden da semana passada sobre a proteção da democracia pode muito bem ter passado despercebida por muitos que a ouviram ou leram sobre ela.

No discurso, Biden destacou: "O que é notável na democracia americana é o seguinte: justamente um número suficiente de nós, em justamente o suficiente de ocasiões, optamos por não desmantelar a democracia, mas por preservá-la."

O presidente dos EUA, Joe Biden, discursa em evento do Partido Democrata em Washington
O presidente dos EUA, Joe Biden, discursa em evento do Partido Democrata em Washington - Samuel Corum - 10.nov.22/Getty Images/AFP

A sentença é condenatória. Apenas um eleitorado apático, uma série de leis de supressão de eleitores ou uma enxurrada de desinformação nos separam do desmonte de nossa democracia.

As eleições presidenciais modernas não costumam terminar em vitórias ou derrotas arrasadoras. Na realidade, nenhum presidente desde Ronald Reagan, em 1984, venceu por mais de dez pontos percentuais do voto popular. A margem de vitória de Biden sobre Donald Trump foi de quatro pontos percentuais.

Essas margens pequenas são obscurecidas pelas falhas e peculiaridades de nosso processo eleitoral, pelo modo como estados são super-representados e como a maioria dos estados designa eleitores com base na regra de que o candidato que recebe mais votos populares leva todos os votos do estado.

Biden foi vitorioso na Geórgia por apenas um pouco mais de 12 mil votos de diferença, —apenas 0,2% dos votos do estado—, mas ele recebeu todos os 16 votos eleitorais do estado. É assim que elegemos presidentes neste país.

Mas esse mesmo acaso significa que os dois últimos presidentes republicanos do país puderem vencer no colégio eleitoral ao mesmo tempo em que perderam o voto popular: George Bush em 2000 e Trump em 2016. Tudo isso para dizer que estamos sempre a apenas um triz da calamidade.

E isso não se aplica apenas às eleições presidenciais. O mesmo dilema aflige as midterms deste ano, com o controle do Congresso oscilando na balança e os bárbaros antidemocracia assomando à porta.

Quase todo o mundo pensa que os republicanos vão retomar o controle da Câmara dos Deputados, sendo a única dúvida por qual margem. Mas o controle do Senado está totalmente em aberto, com algumas das disputas mais contestadas ocorrendo em estados que muitas vezes fazem o fiel da balança pender para um lado ou outro em eleições presidenciais, como a Geórgia, Pensilvânia, Arizona e Wisconsin.

Em cada um desses estados, candidatos republicanos ao Senado em algum momento ou negaram os resultados da eleição de 2020 ou defenderam alegações falsas de fraude nessa eleição.

Esses candidatos têm uma chance de ganhar, mas, mesmo que não o façam, o dano que seu negacionismo eleitoral já provocou vai permanecer. Estamos vendo uma praga geracional ser rogada.

A fé e a dúvida são opostos, mas operam usando a mesma energia emocional, mais ou menos como o amor e o ódio. E são coisas das quais não nos desfazemos facilmente.

Os republicanos converteram a dúvida em relação à eleição de 2020 –e sobre a legitimidade de quaisquer eleições nas quais eles porventura percam— numa prova de fé. É o cadinho pelo qual a pessoa precisa passar para ser uma republicana bem considerada. Você só é genuíno, só é leal, se acredita na mentira.

Muitos funcionários e agentes eleitos estão simplesmente sendo oportunistas, utilizando a mentira para mobilizar os eleitores ou para beneficiar-se do fanatismo que a mentira pariu. Mas, para muitos seguidores de Trump, a mentira é a verdade absoluta. Ela foi fundida não apenas à psiquê das pessoas, mas à sua alma. Não será fácil desfazer esse delírio de massa.

Quando temos fé profunda em alguma coisa, isso nos reconforta. A fé é algo precioso, algo improvável, uma dádiva criada pela mente para nos tranquilizar e reconfortar. Não abrimos mão dela facilmente.

Fé e dúvida permanecem como os fantasmas de uma alma perdida. Mesmo quando aceitamos evidências que desmentem a ideia na qual depositamos nossa fé, a mente frequentemente se aferra a um pouquinho daquilo que ela sentia e no qual acreditava.

Isso é natural. É humano. Mas é um problema para nossa democracia. As pessoas que lutam para salvar a democracia estão armadas com fatos, mas as pessoas dispostas a destruí-la operam com base num sentimento. Os primeiros se baseiam em dados, e os segundos, em dogmas.

Essas são linguagens diferentes que se comunicam com facetas distintas da experiência humana. Os fiéis antidemocracia não podem ser dissuadidos pelos fatos, eles se negam a isso. A fé, que não requer provas, pode ser alimentada por coisas que não são verdade. E é precisamente isso o que está acontecendo.

Essa fé nem sequer admite a ideia de que destruir a democracia seria negativo ou pior que as condições atuais. Assim, as pessoas podem até acreditar que se beneficiariam da morte da democracia.

Esse é o legado deturpado de Trump, algo que vai perdurar não importa o que aconteça nestas midterms e independentemente de Trump candidatar-se à Presidência novamente ou não. O mal que ele causou e continua a causar vai, em última análise, ser muito maior do que ele próprio jamais foi. Trump deu à luz uma distorção que vai sobreviver a ele por muito tempo.

Como Biden observou, o país se encontra perigosamente perto de conduzir ao poder políticos que querem desmontá-lo e refazê-lo, que querem uma democracia parcial ou democracia nenhuma. A América se encontra a uma eleição ruinosa de distância de virar uma memória.

Tradução de Clara Allain

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