Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

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Charles M. Blow
Descrição de chapéu The New York Times

Colocar beleza em vidas marcadas por horrores é forma de sobrevivência

Foi na pobreza que enxerguei como a beleza pode transmitir dignidade em um mundo que tenta roubá-la de você

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The New York Times

No final do século 19, quando o Cleveland Gazette, um jornal negro, publicou uma foto da aclamada jornalista Ida B. Wells, que lutava contra o linchamento, o patriarcado entrou em ação para opinar sobre a aparência dela em vez de comentar seu trabalho. Alguns acharam a foto feia. O Gazette pediu desculpas, escrevendo que, "apesar de ser um retrato fiel, a foto não faz justiça a ela".

Imagem da jornalista Ida B. Wells-Barnett - Mary Garrity

Outros adotaram a visão oposta. O Indianapolis Freeman, outro jornal negro, criticou Wells por "cometer o erro de querer ser bonita além de inteligente". "Ela deveria ter em mente que beleza e genialidade nem sempre são companheiras." Wells, evidentemente uma mulher estilosa, era também uma jornalista séria e um gênio. Sua aparência ou seu jeito de se vestir não deveriam influir sobre a percepção disso. Mas, assim como hoje, expressões de estilo pessoal da parte de pessoas sérias são vistas como frivolidades.

Para homens, o ferrão dessa percepção pode se manifestar de outro modo, já que essa suposta frivolidade às vezes é vista como feminina. Tenho me deparado com isso a vida toda e sempre rejeitei essa ideia.

O modo como construímos nossos ambientes visuais, incluindo as maneiras como nos apresentamos, é um reflexo de nós mesmos. E fazer questão de injetar beleza em vidas que às vezes podem parecer uma sequência interminável de horrores é o único jeito pelo qual alguns de nós conseguimos sobreviver. Tendo crescido em uma família e uma comunidade pobres, tenho visto isso de perto a vida inteira.

Eu o vi em minha avó, no jeito como ela pintava de amarelo-flor a casa modesta que seu marido construiu e na maneira como criava canteiros de flores com pneus velhos. Vi no modo como os chapéus que ela usava para ir à igreja pareciam ficar maiores e mais coloridos à medida que envelhecia.

Vi isso na minha mãe, que aproveitava suas próprias roupas ao máximo para que lhe sobrasse dinheiro para comprar as nossas. Eu via o modo como ela estudava as revistas de moldes e passava as mãos sobre os rolos de pano. Eu o via no modo como ela estudava quais botões comprar.

O senso de estilo dela nada tinha a ver com a moda da maneira como a encaramos –o consumo de coisas, o acúmulo repulsivo de símbolos ostentatórios de classe social. Tinha a ver com honrar as escolhas que fazemos no dia a dia, com a necessidade humana irreprimível de expressar criatividade e o orgulho de querer demonstrar a própria habilidade criativa. Mesmo quando nossas roupas ficavam esgarçadas, rasgadas ou manchadas, minha mãe as convertia em colchas de retalhos, recortando as roupas em pequenas formas geométricas e as empilhando em torres separadas por cor e tipo.

Foi nessa pobreza que eu primeiro enxerguei como a beleza e o orgulho da própria aparência eram usados como maneiras de transmitir dignidade em um mundo determinado a roubá-la de você.

Acho que é essa a razão pela qual festas, encontros de família e churrascos são tão celebrados em muitas comunidades mais pobres e por que as pessoas encontram razões para vestir seus melhores trajes. Trata-se de uma insistência absoluta em expressar alegria e beleza. A celebração vira sobrevivência.

Anos atrás visitei uma organização no Harlem que oferece moradia para pessoas e famílias de baixa renda ou em situação de rua. O local não apenas era absolutamente limpo, mas também era cheio de trabalhos artísticos e tinha uma galeria de arte no piso superior. Quando perguntei aos gestores por que colocavam tanta ênfase no aspecto estético, um deles respondeu: "Não damos à pessoa apenas quatro paredes dentro das quais viver. Nós damos algo com que ela pode se sentir inspirada". Muito bem dito.

Sempre fiz questão de dar ouvidos à parte de mim que abraça a beleza. Eu costumava procurar móveis antigos e restaurá-los eu mesmo. Pintava com aquarelas e desenhava incessantemente. Quando cheguei a Detroit, abri uma pequena confecção. Quando eu era casado, minha mulher e eu passávamos muitos fins de semana vasculhando as lojas de tecidos no distrito das confecções de Manhattan.

E em certa época fiz um curso noturno na Parsons School of Design, na qual, depois de passar o dia inteiro trabalhando no New York Times, eu arrumava musselina sobre manequins.

Não consigo enxergar sentido na minha vida sem que o design ocupe um lugar central, e isso nunca me parece uma distração, perda de tempo ou frivolidade. Parece-me uma expressão de liberdade.

Fiquei obcecado pela ideia da liberdade, de correr em direção à liberdade, de abraçá-la. Quero liberdade em tudo: no pensar, no trabalho, no amor e na vida. Essa é uma das razões pelas quais antevejo com prazer me tornar um daqueles homens de suspensórios esdrúxulos, gravatinha borboleta e meias cor de laranja.

Muitas vezes me encantei ao ver como homens mais velhos aderem à excentricidade na vestimenta a partir do momento em que deixam a vida do trabalho, quando o uniforme se torna irrelevante, quando a testosterona diminui para nada mais que um fiapo. Eles se emancipam de um jeito delicioso.

Presumo que seja a mesma razão que leva algumas mulheres, muitas vezes mais velhas, a usar todas suas pulseiras ao mesmo tempo. Elas retornam àquela magia que curtíamos quando éramos crianças, em que fantasiar-se e usar enfeites eram o esperado, não uma aberração. Estou esperando chegar a minha vez. Se o tempo for gentil comigo e a vida me permitir, quero um dia ser aquele velho de meias laranjas.

Tradução de Clara Allain 

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