Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

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Charles M. Blow

Famílias de negros vítimas da violência policial nos EUA são privadas do direito ao luto

Perdas como as que a mãe de Tyre Nichols sofreu são avassaladoras, e sua capacidade de chorar por elas é convertida em política

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The New York Times

RowVaughn Wells chegou à Igreja Cristã Mississippi Boulevard de Memphis, numa quarta-feira gelada e cinzenta, para se despedir de seu filho Tyre Nichols. Ele estava morto. Assassinado. Morto a pancadas por policiais locais enquanto chamava por ela aos berros, a cem metros de casa.

Do outro lado da rua, em frente à igreja, havia uma multidão de jornalistas. Agentes do Serviço Secreto guardavam a entrada. O santuário estava cheio de dignitários, incluindo a vice-presidente Kamala Harris.

O reverendo Al Sharpton apresenta a família de Tyre Nichols, homem negro assassinado brutalmente pela polícia, durante o seu funeral, na Igreja Cristã Mississippi Boulevard, em Memphis, nos Estados Unidos - Andrew Nelles - 1º.fev.23/via Reuters

Wells entrou na igreja sob os holofotes de câmeras de TV que apontavam para baixo, a partir do balcão. Quando se aproximou do púlpito da igreja e do caixão negro cercado por flores brancas, começou a balançar a cabeça e fazer força para não chorar. Sua dor e seu luto não pertenciam a ela. Não podiam ser isolados do drama político em que ela se viu mergulhada e pelo qual foi capturada.

O reverendo J. Lawrence Turner deu início à cerimônia, dizendo: "Essa família está suportando a carga indesejada, não merecida, ilógica, injustificável e enorme de chorar seu ente querido e ao mesmo tempo lutar por justiça". Uma ideia não me sai da cabeça sobre esse caso e aqueles que o antecederam. Não apenas a perda que a família sofreu é avassaladora, como sua capacidade de chorar essa perda foi alterada e interrompida, convertida em política e em representação. A privacidade está fora de alcance.

Como me disse um ativista local, Hunter Demster, os parentes de Nichols suportaram "uma vigília, após um protesto, após um encontro com a imprensa, após entrevistas a jornalistas". Embora não tenha dito isso com todas as palavras, achava que a família não tinha tido nem um instante para sentar e chorar.

Viver o luto de maneira apropriada, lenta e, se preciso, caótica não deveria ser um luxo. É o mínimo que qualquer um de nós merece quando uma tragédia se abate sobre nossas famílias.

Logo antes do início do funeral de Nichols, Collette Flanagan —líder do grupo Mães Contra a Brutalidade Policial— me contou por telefone que, quando o seu filho morreu, também pelas mãos das forças de defesa, ela disse a si mesma: "Você vai ter que guardar essa dor na gaveta, vai ter que deixar de lado todo o seu sofrimento e sua tristeza, pois não pode ficar calada".

Forçar as famílias a subjugar seu luto é um crime –um crime moral. Vivenciar o luto em público, repetidas vezes, debaixo e diante de holofotes e câmeras, não faz parte do processo normal de luto. Muitas pessoas mal conseguem entender a própria enxurrada de emoções, que dirá conviver com a pressão de serem constantemente solicitadas a expressar esses sentimentos em frases curtas e de efeito.

No entanto, corajosamente, é exatamente isso que famílias como a de Nichols fazem. Eles "engavetam" seu luto pessoal para se tornarem líderes de um luto público, em massa. Em vez de simplesmente chorarem o filho morto, o defendem publicamente. Sem aviso prévio ou preparação alguma, são recrutadas para uma guerra na qual o inimigo está entrincheirado, e os companheiros, sitiados.

Elas abrem mão, porque as obrigamos a isso, de algo que a especialista em luto Joél Simone Maldonado descreveu como "o caráter sagrado do luto" —ficar sentado sozinho e em silêncio com ele, respeitar a perda e desenvolver um ritual em torno dela. Em vez disso, as famílias são obrigadas a encarar o que Maldonado chama de "luto performático". E, fato triste, as famílias que o fazem estão crescendo.

No funeral de Nichols, sentei-me na frente de Donna Gates Bullard, que me cutucou no ombro e contou que seu irmão Michael Gates também morreu espancado por policiais em Memphis. Ele foi morto numa operação chamada "Saltar e Agarrar" em 1989, na qual os policiais montaram uma cilada para pegá-lo. (Parece que não faltam em Memphis péssimos apelidos para esforços de combate ao crime.)

Bullard disse que foi ao funeral para homenagear seu irmão. Isso é algo que tenho visto muitas vezes: a romaria de mães ou irmãs de outros mortos para acompanhar o funeral da vítima mais recente. O luto delas é contínuo, a ferida continua aberta. Durante um dos interlúdios musicais, olhei para trás e vi Bullard debulhada em lágrimas, com as mãos sobre o peito, como se estivesse tentando se acalmar.

Dizem constantemente a esses familiares que eles precisam ficar fortes em nome de seu filho morto. Mas o que foi feito do espaço para a vulnerabilidade? Para a fragilidade humana? Cadê a brecha para que possam confessar sua fadiga sem ser julgados? Cadê o espaço para simplesmente serem, quando só conseguem abrir a boca para chorar ou amaldiçoar os céus? Temos um modelo de uma espécie de atuação perfeita de luto por parte dessas mulheres, um roteiro único que elas devem seguir. Elas são forçadas a burilar e profissionalizar o luto, a substituir o lamento pelo discurso, a receber respeitosamente uma sequência interminável de condolências quando tudo que sua alma pede é silêncio.

Já vi esse conflito de perto em outras mães que perderam seus filhos para a violência e que converteram sua dor em parte de uma causa. Quando entrevistei pessoalmente pela primeira vez a mãe de Trayvon Martin, Sybrina Fulton, ela estava consumida e encolhida pela dor. Fulton levou a própria mãe à entrevista. Ela deitou a cabeça no ombro dela enquanto falava e pôs as mãos em volta de seu braço.

Em 2015, quando passei o dia com a família de Sam DuBose, sua mãe, Audrey, estava tão esgotada que precisou se agarrar a mim para conseguir sair do carro e andar até o lugar onde daria uma entrevista à TV.

Audrey ainda assim deu uma entrevista emocionante quando os holofotes foram acesos, e a câmera começou a gravar. Mas depois que tudo terminou, ela me disse, em um sussurro: "Minha vontade é fechar minha porta, me cobrir e não abri-la nunca mais".

Quando entrevistei a mãe de Tamir Rice, Samaria, naquele mesmo ano, no primeiro aniversário da morte de seu filho, baleado por um policial de Cleveland, uma das primeiras coisas que ela me disse foi: "Estou cansada, sobrecarregada e minha única vontade é ficar deitada". Mas ela não podia se deitar. Naquele dia, precisava dar as caras, receber abraços, dar entrevistas e fazer um discurso —coisas que fez com convicção e ardor a poucos metros do lugar onde o sangue de seu filho de 12 anos encharcara o chão.

Não apenas essas mulheres perdem uma parte de seu coração quando seus filhos são assassinados, como o resto do coração é atrelado a expectativas e discursos públicos. O sofrimento é agravado.

Tradução de Clara Allain

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