Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Charles M. Blow

Guerra cultural de DeSantis rouba de crianças ferramentas de sobrevivência

Ocultar verdades mais brutais do passado prejudica quem precisa se orientar em um mundo ainda hostil

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

The New York Times

É meio-dia do sábado no cemitério Greenwood, em Orlando, e um grupo de estudantes forma um círculo em torno de uma sepultura perto de um laguinho coberto de algas. Muitos deles estão segurando um livro; alguns o apertam contra o peito, como um pregador segura uma Bíblia.

O livro em questão, "A History of Florida Through Black Eyes" (História da Flórida vista pelo olhar negro), foi escrito por Marvin Dunne, professor emérito da Universidade Internacional da Flórida e um dos reunidos no local. Dunne pede silêncio ao grupo e então relata a história instigante do homem sepultado sob a lápide. Ele era Julius "July" Perry, ativista dos direitos de voto dos negros que foi morto –detido, arrastado da cadeia por uma turba de brancos enfurecidos e linchado— no dia da eleição de 1920 durante o massacre de Ocoee, o momento culminante de uma trágica sequência de acontecimentos que teria começado quando um negro tentou votar.

A escala no cemitério fez parte da segunda tour "Ensinar a Verdade", um giro de estudo por locais importantes da história negra na Flórida organizado por Dunn em resposta à ameaça de acabar com o ensino abrangente da história negra. A ameaça foi desencadeada pela história anti-woke do governador republicano, Ron DeSantis.

O governador da Flórida, Ron DeSantis, em entrevista coletiva em seu gabinete - Cheney Oee - 7.mar.2023/AFP

A tour "Ensinar a Verdade" inclui várias visitas a túmulos de pessoas negras mortas por racistas brancos. Dunne me disse que enfoca esses casos "porque são os que é mais fácil esquecer" –as "histórias sofridas" que são, como ele diz, as que mais precisam ser preservadas.

Cerca de duas dúzias de estudantes participam desta tour. Um deles é Marcus Green, garoto negro alto e magro de 15 anos, de olhos amendoados curiosos, tranças de raiz do comprimento de um dedo e uma expressão calma e reflexiva que de vez em quando dá lugar a um sorriso.

Estamos à sombra de uma árvore frondosa, esperando pelo ônibus que nos levará na tour, e Marcus me contou como é para ele ser estudante na Flórida neste momento, dizendo que se sente ao mesmo tempo empoderado e com medo. Perguntei o porquê do medo e ele respondeu: "Porque não dá para não sentir."

Sua mãe me disse que o inscreveu para a tour porque Marcus estava frustrado por sentir que havia uma parte tão grande de sua história que ele ignorava.

A parada seguinte foi em Live Oak, no túmulo de Willie James Howard, adolescente linchado por escrever uma carta de amor a uma garota branca. O pai dela sequestrou Howard, levando-o de sua casa sob a mira de uma arma, o arrastou até um penhasco à beira do rio Suwannee e lhe ofereceu uma escolha impossível: receber um tiro na cabeça ou pular na água com mãos e pés amarrados.

O garoto optou pelo rio. O rio ganhou.

Quando Dunn contou a história de Howard –que descreveu como o Emmett Till da Flórida—, o rosto de Marcus se contraiu. Ele apertava os lábios e franzia o cenho. Howard tinha a mesma idade que Marcus tem hoje: 15 anos. Como ele me disse: "Poderia ter sido eu".

Dunn chamou os alunos para tocar a lápide de Howard, e eles o fizeram, um de cada vez. Marcus hesitou, mas acabou se adiantando, inclinando-se para frente e pressionando sua palma aberta sobre a lápide. Ele deixou a mão ali e a tirou devagar. Mais tarde me disse que quando a tocou, teve uma sensação de serenidade.

Enquanto o grupo caminhava até o ponto ao lado do rio de onde Howard se jogou para a morte, uma estação de rádio local reproduzia uma entrevista entre DeSantis e Sean Hannity em que o governador descreveu o curso avançado de estudos afro-americanos ao qual tem se oposto com veemência como "lixo" e "doutrinação neomarxista".

Assim como a mensagem contida em muitas das diatribes de DeSantis contra a liberdade acadêmica e a chamada cultura woke, essa mensagem é uma salada de circunlóquios repletos de chavões.

Uma parte grande demais do debate em torno da onda censuradora cínica de DeSantis envolve opiniões de adultos, teorias de políticos e sentimentos de crianças brancas –que se presume que ficariam magoadas se se deparassem em sala de aula com alguns dos episódios mais tenebrosos de nossa história.

Mas o que dizer das outras crianças, os cerca de 600 mil alunos negros das escolas públicas da Flórida, como Marcus, que procuram uma história que os inclua –uma história deles— e que agora se sentem agredidos e com medo? Eles não têm importância nenhuma nesta discussão? Como ficam suas necessidades e seus sentimentos?

Minha conversa com Marcus ecoou outra que tive recentemente com outra estudante de 15 anos da Flórida, Adrianna Gutierrez, que se identifica como afrolatina e lésbica, razão por que sente o peso conjunto da campanha de DeSantis contra a história e os estudos de negros e sua campanha anti-LGTBQIA+, que inclui a lei conhecida como "Don't Say Gay" (não diga gay) aprovada pela Flórida.

Adrianna caracterizou a situação na Flórida como "surreal" e disse que parece que as coisas estão "em estado de caos". Tudo isso a levou ao ativismo.

Ela contou que o primeiro protesto do qual participou, no final do ano passado, foi assustador, porque apesar de saber que algumas pessoas não gostavam dela pelo que ela é, ela nunca antes enfrentara cara a cara um ódio tão intenso e concentrado quanto o que vinha dos opositores presentes.

Conforme ela contou, muitos deles vieram acompanhados de crianças pequenas, carregavam cartazes com slogans sobre a escola ser "um lugar para se aprender e não para se ensinar sobre transgenerismo" e gritavam "protejam nossas crianças".

Mas quem vai proteger crianças como Marcus e Adrianna, crianças que querem conhecer nossa história completa, que querem encontrar-se e ser quem são e que merecem sentir-se em segurança quando o fazem? Ocultar deles as complexidades ou as verdades mais brutais do passado é lhes roubar as ferramentas das quais precisam para se orientar e sobreviver em um mundo ainda hostil, onde os horrores não estão apenas em túmulos e as pessoas queer não estão confinadas no armário.

Na última parada da tour "Ensinar a Verdade", Dunn levou o grupo por uma estrada de terra na comunidade de Rosewood até uma área arborizada que ele está convertendo num parque memorial das vítimas do massacre de Rosewood.

Ele contou às crianças sobre um encontro tenso ocorrido em setembro, quando ele foi ao local com outro grupo, que incluía seu filho, e o vizinho da frente investiu contra eles com sua caminhonete, xingando-os com "a palavra começando com n", e teria quase matado seu filho. O vizinho foi detido e acusado criminalmente de agressão com agravante por uso de arma letal.

Enquanto Dunn contava a história, um cartaz era visível ao lado da cerca da casa do vizinho. Dizia: "Terra de DeSantis: Terra de Liberdade".

Tradução de Clara Allain

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.