Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

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Charles M. Blow
Descrição de chapéu The New York Times LGBTQIA+

Eles saíram do armário tarde e encontraram uma nova vida na meia-idade

Muitos, incluindo eu, assumiram-se mais velhos; nossas histórias são não apenas educativas como também inspiradoras

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The New York Times

"Sou do Harlem. Nascida, criada, torrada, amanteigada, besuntada de geleia e de mel no Harlem."

Foi assim que Audrey Smaltz, ex-modelo e veterana da indústria da moda que completou 86 anos neste mês, apresentou-se para mim, anos atrás, em Manhattan. Era sua frase de efeito.

Ela era a grande dama do salão. "Tive homens fabulosos na minha vida", contou-me. Mas em 1999, a jogadora olímpica de basquete Gail Marquis, 17 anos mais jovem, convidou-a para jantar. Smaltz não encarou como uma saída romântica. Disse que não tinha o menor interesse por mulheres na época.

Gail Marquis, ex-jogadora de basquete, e Audrey Smaltz, em Nova Jersey no ano de 2011
Gail Marquis, ex-jogadora de basquete, e Audrey Smaltz, em Nova Jersey no ano de 2011 - Michelle V. Agins/The New York Times

Mas quando Marquis lhe deu um beijo de boa noite, recordou Smaltz, "foi como beijar um homem". "Eu mal consegui acreditar no que havia feito." E dá risada. "Uau!" As duas se casaram em 2011.

A história destoa do que ocorre normalmente. Uma década atrás, o Centro Pew de Pesquisas descobriu que 12 anos é a média de idade em que adultos gays, lésbicas ou bissexuais primeiro sentiram que talvez fossem algo a não ser heterossexuais ou convencionais e que, no caso dos que hoje dizem que têm certeza de ser lésbicas, gays, bissexuais ou transgêneros, essa percepção chegou aos 17 anos em média.

Em 2022, o Instituto Gallup descobriu que 1 em cada 5 adultos da geração Z se identifica como LGBT.

Hoje podemos perder de vista as pessoas do outro lado desse extremo: pessoas como Smaltz –e eu— que, por motivos diversos, saíram do armário mais tarde. Conversei com várias pessoas que viveram experiências semelhantes. Seus relatos não apenas foram educativos, mas também inspiradores.

Audrey Smaltz, sobre se alguma vez sentiu vergonha: "Vergonha? Que nada, eu estava contando para todo o mundo. Só lamentei não poder contar à minha mãe e ao meu pai, porque já eram falecidos".

Minhas entrevistas mostraram que a experiência de Smaltz não é incomum: todas as mulheres com quem conversei disseram que não haviam sentido atração homossexual antes. Explicaram que se apaixonaram por uma mulher, não que estavam procurando relacionamentos com mulheres de modo geral.

A atriz de cinema e televisão Niecy Nash-Betts recorda que estava jantando com alguém que ela enxergava simplesmente como uma amiga, a cantora Jessica Betts, quando "alguma coisa aconteceu." "Comecei a transpirar nas axilas e pensei ‘espere aí’. Geralmente eu só sentia isso por meninos."

Em 2020, aos 50 anos, Nash-Betts se casou com Betts, então com 41 anos. Ela chama Betts de seu "hersband" (algo como marido-mulher). Pergunto a Nash-Betts, que já foi casada duas vezes antes, com homens, como ela hoje se identifica na comunidade LGBTQIA+: "Comprometida!". E explica: "Encontrei a pessoa para mim. Isso não tem absolutamente nada a ver com idade ou gênero".

Essa rejeição dos rótulos tradicionais se repetiu com outras pessoas. Smaltz disse brincando: "Não sou lésbica. Gail, sim". Ela riu. "Estou apaixonada por uma lésbica." Ela disse que não se encara como lésbica porque "não amo um monte de mulheres". "Amo Gail, apenas."

Nash-Betts, sobre as reações ao fato de ela ter se apaixonado por uma mulher: "As pessoas que te amam de verdade só querem te ver feliz. Muitas vezes, quando você está infeliz com uma escolha que alguém está fazendo e que não te afeta diretamente, o problema não é essa pessoa –é que você quer controlá-la".

Jenna von Oÿ, que atuou nas séries "Blossom" e "The Parkers", disse a mesma coisa: falou que pode ter sentido uma "atração leve" por mulheres desde sempre, mas que, "quando me apaixonei por minha companheira, foi o primeiro indício de que era um amor realmente autêntico, muito profundo, que transcendia a atração leve". Ela me disse que tinha 40 anos quando conheceu sua companheira.

Lisa Diamond, professora na Universidade de Utah, documentou esse fenômeno em um livro. Disse que pesquisas demonstram que "uma das características fundamentais e definidoras da orientação sexual feminina é a fluidez", que leva algumas mulheres a vivenciarem uma "flexibilidade que depende da situação " quando sentem desejo, independentemente de sua orientação sexual geral.

Essa é uma razão pela qual Diamond defende que o argumento de que "nasci desse jeito" precisa ser aposentado, porque pesquisas científicas em evolução contestam esse conceito, concluindo que a genética faz parte da equação da atração sexual, mas não é o único fator. A sexualidade é complexa. Ela diz que o argumento de que "nasci desse jeito" é injusto com a grande gama de realidades queers.

Como ela explicou em sua palestra TED de 2018, o argumento "é injusto porque deixa entender que as pessoas LGBT que se enquadram em determinado estereótipo cultural, aquelas que são exclusivamente gay desde que se lembram, são por alguma razão mais merecedoras de aceitação e igualdade que alguém que saiu do armário aos 60 ou cujas atrações têm sido mais fluidas ou que é bissexual".

Como homem bissexual, a análise de Diamond cala fundo. Aqueles de nós com identidades que não correspondem ao paradigma homo ou hétero do berço até o túmulo são constantemente alvos de desconfiança, incluindo entre outras pessoas queer –constantemente cobradas para se explicar.

Como Diamond me disse recentemente, as histórias de pessoas que saem do armário tarde na vida, em especial pessoas que antes se enxergavam como héteros, constituem "uma ideia ameaçadora". Alguns as veem como "uma espécie de ameaça assustadora de que, seja como for que você acabou entendendo e qual for o sentido que acabou encontrando em sua própria sexualidade", isso pode ser impermanente.

Entre pessoas que se assumiram LGBTQ mais tarde e que já tiveram casamentos heterossexuais antes, muitos com filhos, outro tema recorrente é a preocupação com como suas famílias serão afetadas.

Pierre Lagrange, investidor, foi casado com uma mulher por mais de duas décadas até que, aos 48 anos, percebeu, enquanto fazia terapia, que sentia atração por homens –uma atração que ele acreditava já sentir havia algum tempo, mas que havia reprimido. Antes de se assumir como gay para sua mulher e seus filhos, ele ficou preocupado com a possibilidade de "detonar uma família maravilhosa". Mas, quando o fez e sua mulher e seus filhos reagiram com amor e compreensão, esse peso saiu de suas costas.

Lagrande se casou com o cineasta Ebs Burnough, ex-assessor da Casa Branca, em 2019. O medo de perder a família é o mesmo que Barbara Satin, mulher transgênero de 88 anos de Minneapolis, enfrentou em seu próprio caminho para se assumir: "Tinha medo de perder meu casamento, perder minha família".

Satin contou que primeiro ela compreendeu que era diferente: "Nasci em 1934. Não tínhamos vocabulário sobre questões trans ou de identidade de gênero. Praticamente o único termo que constava no dicionário era ‘travesti’. Eu sabia que tinha sentimentos femininos. Mas não sabia o que era isso".

Sair do armário assume formas diferentes. Algumas pessoas saem explosivamente; outras se esgueiram para fora aos poucos. Algumas contam para todo o mundo ao mesmo tempo, possivelmente nas redes sociais, e outras vão contando às pessoas em círculos maiores, partindo do círculo de amigos e familiares mais íntimos, chegando a conhecidos casuais e finalmente ao público geral.

A maioria das pessoas com quem falei foi saindo do armário aos poucos, como Lagrange, Satin e eu. Sua preocupação principal era qual seria a reação de seus cônjuges e filhos.

Todas disseram que suas famílias superaram suas expectativas, dando-lhes amor e solidariedade. Mas é evidente que essa não é a experiência de todos. Enquanto alguns são recebidos com aceitação, outros são envoltos em acrimônia. E em todas essas circunstâncias é importante levar em conta a jornada, às vezes o sofrimento, dos cônjuges das pessoas que saíram do armário.

Ken Henderson, 74, é gay, diretor e CEO de uma ONG de San Francisco que trabalha com serviços para pessoas com HIV, programas de combate à fome e jovens e idosos carentes. Ele contou que saiu do armário com sua mulher quando tinha 29 anos. Enquanto ainda eram casados, Henderson já saía com homens. Uma noite, jantando, ela perguntou se ele era bissexual, e ele admitiu que sim.

Henderson disse que ela não fez grandes objeções, então passou a explorar suas atrações homoafetivas "um pouco mais abertamente". Isso até namorar um homem que fez objeção ao fato de ele seguir casado.

Foi então que Henderson entendeu que ele e sua mulher precisavam se separar, que não podia ter "o melhor dos dois mundos". Então disse a ela: "Merecemos uma chance de ter uma relação romântica mais plena, e isso não vai acontecer se estivermos casados". "Ela não gostou, mas meio que concordou."

Henderson fala do conselho que daria a si próprio quando era mais jovem: "Não tenha medo dos rótulos. Seja quem você é e viva sua vida. Olho para trás e percebo que eu racionalizava tanto, tinha depressão, no esforço de não ser homossexual. Quando me dei conta de que era, passei a curtir a vida muito mais."

Essas conversas podem ser dilacerantes. Sei disso: contar à minha mulher sobre meu único encontro com outro homem –que aconteceu quando eu tinha 20 e poucos anos, quando ainda não éramos casados— foi uma das conversas mais difíceis que já tive. Uma noite, quando voltávamos de um jantar, falei a ela que havia algo que precisava lhe dizer. Com lágrimas começando a escorrer, disse que, se fôssemos continuar juntos, ela precisava me conhecer por inteiro, o que incluía o fato de que eu tivera intimidade com homens.

Falei que se ela quisesse me deixar, entenderia. Ela disse que não, que queria ficar comigo. Naquela noite ficamos sentados no hall da casa no escuro, chorando juntos. Continuamos juntos por mais sete anos.

Até eu escrever sobre minha atração homoerótica na minha autobiografia, em 2014, nunca havia contado sobre isso a outros membros de minha família, a meus amigos de longa data ou ao mundo. Eu tinha 44 anos. O arrependimento que senti por ter demorado para contar à minha mulher se somou ao arrependimento por ter demorado para contar ao mundo.

Às vezes nos preocupamos tanto com a possibilidade de as pessoas reagirem com base em seus vieses que lhes negamos a oportunidade e a escolha de transcender esses vieses. Trancamos nossos armários por dentro para nos protegermos da possibilidade de trauma que nosso medo amplifica, roubando-nos a oportunidade de afirmação de vida de sermos corajosos.

Lucius Lamar, 55, artista e designer de interiores que vive em Oxford, no Mississippi, e acabou por se casar com "o primeiro garoto que beijei na vida", disse que quando ele e seu marido viveram na Califórnia, tinham dois apartamentos, para poder esconder seu relacionamento dos parentes quando estes vinham visitá-los.

Lamar disse que ele é "filho do exótico e colorido ‘cinturão bíblico’", em que a vergonha, a culpa "e um monte de outro lixo psicológico mexeram um pouco com minha cabeça". Ele só se assumiu perante sua família aos 45 anos, mas disse que, na noite em que contou aos familiares, dormiu "feito uma criança".

Tradução de Clara Allain

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