Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Charles M. Blow

Vice-presidente Kamala não é, nem deve ser, a 'mãe preta' dos americanos

Até mesmo estereótipos inconscientes podem ser prejudiciais; confortar o país em crise não é o fardo das mulheres negras

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

The New York Times

A vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, foi ao programa "The Drew Barrymore Show" e, em um momento descontraído, explicou, como fez durante o último ciclo eleitoral presidencial, que em sua família seus enteados a chamam carinhosamente de Momala.

Barrymore respondeu que todos nós precisamos de "um abraço tremendo" agora e disse a Kamala: "Precisamos que você seja a Momala do país."

Não acredito que Barrymore tenha tido a intenção de causar algum dano, muito pelo contrário, e a vice-presidente foi magnânima, aceitando o comentário com bom humor. A plateia no estúdio aplaudiu.

A vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, participa de um evento oficial na Casa Branca ao lado do presidente Joe Biden - Elizabeth Frantz - 13.mai.24/Reuters

Mas até mesmo estereótipos gentis e inconscientes podem ser prejudiciais, e é importante explorar por que este comentário, que pode parecer inofensivo para alguns, é ofensivo para outros.

Mulheres e meninas negras passam suas vidas inteiras em fuga de uma sociedade que insiste em desindividualizá-las e desumanizá-las, que insiste em forçá-las a se encaixar em generalizações amplas.

Existe a caricatura de Sapphire de "Amos 'n' Andy" [programa de rádio e televisão americano popular nas décadas de 1930 a 1950], a mulher rude, maliciosa e propensa a acessos de raiva. Existe a Jezebel, dominada por um espírito lascivo e sem bússola moral ou autocontrole. Existe a "rainha do bem-estar" —estereótipo popularizado durante a campanha presidencial de Ronald Reagan em 1976 — enraizado na combinação tóxica de promiscuidade e evitação do trabalho. E, é claro, existe a ideia da mulher negra raivosa, um estereótipo que muitas vezes se sobrepõe e amplifica outros.

Mas, nesse caso, o estereótipo em questão é o da mãe preta —a cuidadora, o colo em que todos podem descansar, o avental em que temos o direito de pendurar.

No psiquismo americano, é a história de Miss Millie do livro "A Cor Púrpura", de Alice Walker, sobre alguém tão cego por uma concepção de sua própria virtude que não percebe quando age com condescendência.

Quando Miss Millie, a esposa do prefeito, encontra Sofia e vê o cuidado que ela teve com seus filhos —e o carro chique que Sofia dirige e o relógio de pulso que ela usa— Miss Millie não só quer aquele cuidado para si mesma, mas também busca diminuir Sofia. Ela imediatamente pede a Sofia que seja sua empregada. Acredita plenamente que é seu direito e que seu pedido, feito de forma educada, deve ser honrado.

A maneira como Kamala e sua família expressam amor e conexão é deles, mesmo quando Kamala compartilha isso publicamente. Permanece parte de sua vida privada, não de suas obrigações profissionais e políticas. Ela merece separação entre os dois, e devemos respeitar essa fronteira.

O fato de que ela seria chamada para confortar e nutrir o país, em vez de representá-lo como sua obrigação, é humilhante e mantém as mulheres negras cativas a mitologias históricas. Nosso país pode de fato precisar de orientação moral e aconselhamento coletivo, mas as mulheres negras não são obrigadas a fornecê-los.

Nas eleições, as mulheres negras são frequentemente aclamadas pelos progressistas como salvadoras da democracia por causa de sua alta taxa de votação em candidatos democratas. Aqui, mesmo sem querer, Barrymore não está longe de sugerir que as mulheres negras —pelo menos esta mulher negra, talvez a mais poderosa do mundo— não só devem salvar o país, mas também cuidar dele.

É uma ilustração da infantilização das mulheres negras que as retrata como cobertores humanos racializados —perdoadoras, tranquilas e até mágicas.

Com esse estereótipo, as mulheres negras são vistas como possuidoras de uma capacidade sobrenatural de acalmar, de fornecer um porto seguro para os outros, mesmo que não encontrem um porto seguro para si mesmas.

Como o Centro de Pobreza e Desigualdade da Universidade de Georgetown relatou em 2019, seus pesquisadores descobriram em um estudo de 2017 que "os adultos acreditam que as meninas negras de 5 a 19 anos precisam de menos cuidado, proteção, apoio e conforto do que as meninas brancas da mesma idade."

Nisso, há uma expectativa de abnegação que apaga a possibilidade de um eu privado, mantido à parte, com vontades, necessidades e desejos próprios.

Barrymore pareceu pensar que pedir a Kamala para ser a Momala do país era uma forma de elogio, uma forma de honrar o alto conceito que tem dela. Mas ela o fez com uma cegueira histórica que os EUA frequentemente demonstram ao falar sobre pessoas negras.

É a contradição de elevar enquanto reduz.

Como James Baldwin escreveu em "Notas de um Filho Nativo": "Os americanos, infelizmente, têm a habilidade mais notável de alquimizar todas as verdades amargas em uma confeição inofensiva, mas picante, e de transformar suas contradições morais, ou a discussão pública de tais contradições, em uma decoração orgulhosa, como as dadas por heroísmo no campo de batalha."

Na tentativa de transmitir intimidade em sua conversa com a vice-presidente, Barrymore permitiu que a informalidade se transformasse em desrespeito.

O país não precisa e não deve pedir à vice-presidente Kamala Harris para ser sua mãe ou sua ama. O país precisa que ela continue a avançar a agenda da administração na qual serve —e pela qual os americanos votaram — como todos os homens brancos antes dela.

E os EUA precisam amadurecer e ser responsáveis por suas próprias ações e pelas repercussões que delas decorrem. Confortar o país neste momento de crise não é o fardo das mulheres negras.

Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com três meses de assinatura digital grátis

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.