Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Clóvis Rossi

Antes que fake news matem

Goebbels fez delas arma de destruição em massa; dá para evitar que as de hoje também matem?

O ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels (esq.), a cineasta Leni Riefenstahl e Adolf Hitler em Berlim em 1938
O ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels (esq.), a cineasta Leni Riefenstahl e Adolf Hitler em Berlim em 1938 - Associated Press

Joseph Goebbels, o ministro de Propaganda do nazismo, bem que poderia ser considerado o patrono das fake news. Não que ele tivesse sido o primeiro a usar mentiras como instrumento de política e de violência. Fake news, a rigor, existem desde que a serpente postou a falsa versão de que Adão e Eva poderiam comer a maçã que nada aconteceria.

Mas Goebbels estabeleceu um paradigma —nefando e letal— que não foi ainda superado. Uma coisa são as fake news que supostamente ajudaram a eleger Donald Trump; outra, a devastação causada, direta ou indiretamente, pelas falsidades que Goebbels disparava.

Há pelo menos um episódio que precisa ser lembrado, como símbolo sinistro e como elemento de comparação com a onda atual de fake news.

Refiro-me à intensa campanha de propaganda despejada sobre os alemães contra a Polônia. Até filmetes, igualmente “fakes”, foram divulgados para simular a perseguição aos alemães que ficaram em território atribuído à Polônia após a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial (1914-18).

Armou-se assim o ambiente para que, no dia 1º de setembro de 1939, a Alemanha invadisse a Polônia. Dois dias depois, a Inglaterra e a França declararam guerra à Alemanha, marco do início da Segunda Guerra Mundial.

A ocupação da Polônia foi seguida pela perseguição e eliminação de quase toda a elite polonesa —a política, governamental, acadêmica, sindical, empresarial.

Seria fake news responsabilizar Goebbels também pelo Holocausto. É verdade que seu ministério foi responsável por inúmeras ações de disseminação do ódio contra os judeus. 

Mas é razoável supor que o Holocausto teria ocorrido com ou sem Goebbels, ante o virulento antissemitismo de toda a cúpula nazista.

Mas a ocupação da Polônia, para a qual influiu o propagandista do nazismo, acabou por abrir as portas para a massificação da matança de judeus.

Era na Polônia, afinal, que, à época, vivia o maior número de judeus: 3,4 milhões, mais do que na gigantesca União Soviética (3,02 milhões), mais que na própria Alemanha (566 mil).

Estabeleceram-se na Polônia pelo menos desde o século 11. No século 16, 8% de todos os judeus do mundo lá viviam.

Foram dizimados, como se sabe. É comovente ver hoje, na pracinha de Kazimiers, antigo centro da vida judaica em Cracóvia, um gueto durante a guerra e agora animado centro de lazer, a reprodução de comércios judaicos da época pré-guerra. Mas é só a carcaça, só existem fantasmas.

É possível que a invasão da Polônia tivesse ocorrido mesmo sem as fake news de Goebbels. Mas é óbvio que elas contribuíram fortemente para cevar o ódio. Esse é o ponto de contato com as falsidades contemporâneas: não sabemos ainda como evitar que o ódio, já latente, se transforme em arma de destruição em massa.

Afinal, vale ainda hoje a frase do filósofo espanhol Jorge de Santayana y Borrás (mais conhecido como George Santayana), gravada na entrada do “Bloco 4” do centro de extermínio de Auschwitz: “Quem não relembra a história está condenado a vivê-la de novo”.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.