Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes

É esse STF que deixa milicos tão irritadiços?

Se o Supremo levasse a sério o projeto constitucional, haveria militares presos

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Dias após o golpe militar de 1964, Carlos Heitor Cony publicou no Correio da Manhã duas notáveis crônicas. Buscava consolo na esperança de dia melhor, na expectativa de que a marcha da história não seria refreada pela insânia militar.

Em "O Ato e o Fato", contrastava o golpe com o futuro: "O Ato é esse monstrengo moral e jurídico que empulhou o Congresso e manietou a Nação. O Fato é que a prepotência de hoje, o arbítrio de hoje, a imbecilidade de hoje, estão preparando, desde já, um dia melhor, sem ódio, sem medo. E esse dia ainda que custe a chegar, ainda que chegue para nossos filhos e netos, terá justificado e sublimado o nosso protesto e a nossa ira".

Em "Revolução dos Caranguejos" definia a baixa estatura dos "revolucionários": "Já que o Alto Comando Militar insiste em chamar isso que aí está de Revolução --sejamos generosos: aceitemos a classificação. Mas devemos completá-la: é uma Revolução, sim, mas de caranguejos. Revolução que anda para trás. Que ignora a época, a marcha da história. Nós andaremos para a frente, apesar dos descaminhos e das ameaças".

A história traiu a esperança. Um dia sem ódio e sem medo não chegou nem para os filhos, nem para os netos de Cony. A ditadura terminou oficialmente em 1985, mas o arbítrio e a imbecilidade militares sobreviveram a 30 anos de democracia. Foi uma falha política decisiva da redemocratização. Só assim para que uma nova geração de caranguejos pudesse despertar e abraçar alguém da estirpe de Bolsonaro.

O que seriam o Fato e o Ato de 2020?

O Fato: país com pior desempenho global na contenção da pandemia e ameaça sanitária internacional; mais mortes e mais choque econômico do que a pandemia, sozinha, geraria; ícone de desprezo ao meio ambiente e a povos nativos; presidente mal-vindo em qualquer país do Ocidente democrático (do qual os EUA se afastam). A tragédia é tangível em vidas perdidas e intangível na corrosão cívica, espiritual e simbólica do país.

O Ato: ameaça de golpe militar baseada numa "interpretação" cínica e caricata do artigo 142 da Constituição, como se os irresignados com o STF tivessem direito de recorrer ao quartel.

Quando Juvenal, o poeta romano, suscitou a pergunta clássica de arquitetura institucional --"quem guarda o guardião?"--, não contava com a astúcia de generais que ensaiam calar o guardião. Apelar às armas é a resposta autocrática.

Na Constituição, Juvenal só encontraria a resposta democrática: ninguém guarda o guardião. Sua última palavra, contudo, não é imutável, nem infalível, nem isenta de responsabilidade. Poderá ser desafiada por novas deliberações, pela força de novos argumentos e fatos, nunca pela força bruta.

Quando erra, cabe ao STF autocorreção em novo processo, não correção "sob vara". Quando o legislador discorda, pode editar emenda constitucional.

O STF tem feito pouco. Faz pouco há muito tempo. Tivesse levado o projeto constitucional a sério, haveria militares presos por crimes contra a humanidade. Quando validou, em 2010, a aplicabilidade da Lei de Anistia para crimes de tortura, o STF temia "abrir feridas do passado". Não percebeu que as feridas nunca fecharam e tornou Jair Bolsonaro possível.

É esse STF que deixa milicos irritadiços? Não há militares na prisão. Há militares no gabinete presidencial. E no gabinete do presidente do STF. Mal-agradecidos, esses militares. A fração democrática das Forças Armadas deve resposta à altura.

Luis Fernando Verissimo, em prefácio às crônicas de Cony, distinguiu a índole democrática da autoritária sob o ângulo do caráter: "Ali estava aquele cara dizendo tudo o que a gente pensava sobre o golpe, sobre a prepotência militar e a pusilanimidade civil, com uma coragem tranquila e uma aguda racionalidade que tornava o óbvio demolidor".

Prepotência e pusilanimidade são passaporte de ingresso na cidadela do bolsonarismo. Dentro e fora do armário.

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