Chegou a hora de explicitar as "quatro linhas" da constituição bolsonarista. A expressão mais hipnótica do bestiário do ex-presidente virou mantra encantatório para militares defensores de golpe e apoiadores. E justificou retoricamente, nos últimos anos, o crime, a incitação ao crime, a ameaça e a real tentativa de fechamento de instituições e do regime. Pessoas cultivadas nesse frenesi idiótico esfaqueiam Di Cavalcanti como ato heroico.
Um dia o historiador Capistrano de Abreu propôs ao país uma Constituição com apenas dois artigos. Primeiro: "Todo brasileiro deve ter vergonha na cara." Segundo: "Revogam-se as disposições em contrário."
A ironia ecoa debates da história do pensamento constitucional que culminaram em constituições e instituições baseadas justamente na premissa de que "vergonha na cara" é qualidade humana rara. A aposta nessa virtude dispensaria a complicada separação de poderes. Bastaria um líder infalível e súditos que eliminem os transviados por sua conta. Sem freio, sem contrapeso. Um povo de autodeclarados "homens de bem" contra a rapa.
Não foi por aí que democracias surgiram e se desenvolveram. Desconfiaram da nossa falta de vergonha na cara e espalharam controles. Mas todo projeto autoritário adota aquela linguagem como forma de sedução e manipulação da alma. O bolsonarismo torturou o constitucionalismo, fez juramento a Ustra e arrancou as "quatro linhas" seguintes:
Linha um: "Jair Bolsonaro e a milico-família são irresponsabilizáveis." Parágrafo único: "Toda decisão judicial ou legislativa que desagrade obviamente usurpa poder e autoriza insubordinação e intervenção." Linha dois: "Para a milico-família, tudo, até fuga em avião da FAB; para os inimigos, a ponta da praia." Linha três: "A corrupção e o crime da milico-família estão nos olhos de quem vê." Linha quatro: "Revogam-se as linhas em contrário."
O bolsonarismo engendrou uma espécie de autocracia militante. É mobilizadora, ruidosa, espalhafatosa, de alta intensidade. Pode funcionar dentro do Estado, mas também fora dele. É militarista, fundamentalista, violenta e destruidora de instituições de produção de conhecimento e de verdade.
E sequestram o nosso tempo, pois enquanto nos paralisamos em pânico e estupefação, o crime organizado destrói a Amazônia, a pobreza e a fome se espalham. Os profundos problemas do país ficam em estado de espera.
A ideia de uma "democracia militante" surge na história como resposta a esse risco. Cria instrumentos excepcionais para que a tolerância liberal não semeie um parquinho de milicianos e não se suicide. Não surpreende que sua primeira versão intelectual e institucional tenha nascido na Alemanha. Inspirou experimentações jurídicas pelo mundo.
Às vezes uma inovação jurídica é trágica e puramente ilegal, como a derivada da cínica máxima lavajatista "vamos exorcizar o país, não importam os meios", da oficina Moro-Dallagnol. Ou no mote antilavajatista - "vamos descriminalizar a política, deixa o autocrata livre para delinquir" —do cérebro de Aras (cognição incompleta, alegou). São facetas de uma mesma patologia. Primos-irmãos que aproximam o Estado de Direito do precipício.
Inovação jurídica desestabiliza práticas anteriores e desperta perplexidade. Seus erros merecem análise e autocorreção. Não significa liberdade para ignorar o direito. Soluções podem ser criativas, corajosas e ainda respeitar normas constitucionais substantivas e processuais. A inteligência jurídica e institucional não se faz com aplicadores robotizados de regras. O contexto de defesa da democracia pede ousadia. Não há inovação sem risco.
Não pergunte sobre a legalidade das ordens de prisão feitas por Alexandre de Moraes sem antes se perguntar sobre a legalidade da ausência de um procurador-geral da República que cumpra seu dever constitucional. Aras deixa uma fratura exposta na democracia. Mesmo que uma coisa não justifique a outra, a conjuntura muda. A necessidade de adaptação jurídica também.
Em campanha por liberdade diante do ressurgimento da intolerância religiosa e racial, em 1938, a Jewish Telegraphic Agency, de Nova York, afirmou: "A única resposta para a autocracia militante é a democracia informada, unida, revitalizada e enérgica".
Não supõe que o bem, ou, no caso, a democracia, sempre ganha no final. Essa visão infantilizada não faz jus ao tamanho do esforço adiante. Exige democracia que saiba se defender com arrojo e responsabilidade, pois tem clareza da ameaça e consciência de sua fragilidade.
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