Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

O 'estado de coisas inconstitucional' do lobby advocatício

Não misture heroísmo com suspensão geral de acordos de leniência de empresas

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A história da liberdade reserva lugar digno para alguns advogados e juízes. E lugar especialmente deprimente para outros. Não há muitas profissões com tantas ferramentas e canais de influência para enfrentar o abuso de poder de modo civil e institucional, para responder ao arbítrio por meio da força de um argumento de Justiça, não da força bruta.

Juristas que integram o panteão da luta por liberdade costumam caminhar na margem da cultura das carreiras jurídicas, em geral bem adaptada a toda configuração política que lhes preserve interesses. A transição de ditaduras para democracias, por exemplo, e a sobrevivência de dissidentes têm capítulo reservado aos "freedom fighters" do direito.

Estátua da Justiça, que representa a imparcialidade do direito, na fachada do STF (Supremo Tribunal Federal) em Brasília
Estátua da Justiça, que representa a imparcialidade do direito, na fachada do STF (Supremo Tribunal Federal) em Brasília - Gervásio Baptista - 12.jan.22

Desse grupo participam figuras como Ernst Fraenkel, na Alemanha nazista; Albie Sachs e Arthur Chaskalson, na África do Sul do apartheid; Thurgood Marshall e Ruth Bader Ginsburg, na luta por direitos civis nos Estados Unidos; Jawaharlal Nehru, na Índia; Luiz Gama, Barbosa Lima Sobrinho e José Carlos Dias, no Brasil. Sem falar em advogadas que protagonizaram conquistas sem a mesma visibilidade masculina.

Alimentar a mitologia do heroísmo faz parte dos rituais da profissão. Mas às vezes se deixam embriagar no êxtase da autoimagem e avacalham. Convertem a mitologia num fetiche pouco sincero, escondem interesses pouco heroicos e buscam recompensas bastante mundanas. No Brasil contemporâneo, essa tradição é reivindicada por parcela da advocacia que defendeu clientes contra os tantos abusos da Operação Lava Jato.

Essa advocacia progressista por autodeclaração se organizou politicamente, dividiu o mundo do direito entre lava-jatistas e antilava-jatistas, deu as mãos a ninguém menos que Augusto Aras e Gilmar Mendes, e estruturou uma prática de lobby nos tribunais mais profunda do que jamais se tinha visto. Vendem acesso a juízes, não inteligência jurídica.

Semanas atrás, os partidos PSOL, PC do B e Solidariedade foram convencidos a ajuizar uma ousada ação constitucional no STF (ADPF 1051). A ação pede a suspensão do pagamento de todas as multas e a revisão de todos os acordos de leniência firmados entre o estado brasileiro e empresas que praticaram ilícitos. De tudo.

Por quê? Porque tudo teria ocorrido em "situação de extrema anormalidade político-jurídico-institucional, mediante situação de coação". Coação que nem mesmo as empresas alegam ter sofrido. E, para dar mais dramaticidade, pede a declaração de um "estado de coisas inconstitucional". Um pedido no atacado, sem nuance jurídica, sem delicadeza política, sem distinção analítica. Sem noção.

Para completar, pediu que a ação não fosse distribuída a um ministro por sorteio, mas direto para a mesa de Gilmar Mendes. Por quê? Porque ali naquela mesa existe ação obscura sobre tema parecido. Teria "conexão", portanto. Essa parte não deu certo, Rosa Weber detectou o truque, e André Mendonça recebeu a relatoria.

O conceito de estado de coisas inconstitucional (ECI) foi construído pela Corte Constitucional colombiana para tratar de casos com duas características: violação massiva de direitos de grupos vulneráveis; omissão de autoridades estatais na proteção desses direitos. Situações em que não basta declarar a inconstitucionalidade de uma lei, pois demandariam remédios judiciais mais complexos. Aplicou-se, por exemplo, na defesa de milhões de pessoas desalojadas de seu território em função da guerrilha.

No Brasil, emprestamos o conceito quando o professor e advogado Daniel Sarmento, em 2015, representando o PSOL, propôs ação para reconhecer o ECI das prisões brasileiras (ADPF 347). Desde então o conceito se espraiou para muitos temas (operação policial em favelas, racismo, população em situação de rua, desmatamento, saúde indígena).

Ao contrabandear o conceito para suspender acordos de leniência decorrentes da corrupção de empresas, a ADPF não só ajuda a banalizar, vulgarizar e esvaziar uma categoria reivindicatória que ainda nem ganhou tração nas decisões constitucionais brasileiras. A ação faz coisas tão mal cheirosas como o denunciado "lawfare" (o uso do direito contra inimigos) da Lava Jato .

Curioso que tenham sido esses partidos políticos a encampar a causa de empresas que poderiam acionar o Judiciário em nome próprio. Bastante forçado presumir coação, no atacado, de maneira geral, a todos os acordos firmados. Muito sintomático que, diante da alegada "degeneração", peçam apenas suspensão, não anulação dos acordos. Afinal, que se interrompa a sanção, não o benefício da leniência.

O recheio de heroísmo vem na justificativa final: não se faz isso em nome das empresas afetadas, mas da "sociedade civil" e da "economia brasileira", ou da "continuidade da atividade de empresas essenciais". Empresas essenciais que, sabemos, corromperam competição, formaram cartéis, fraudaram licitações, subornaram legisladores etc. E não desprezem esse etc. Nem quem ganha com isso. Não são o PSOL nem o PC do B.

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