Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
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Prostitutas

Prostituição é empoderamento caso possa nos lembrar de que mulheres têm desejos sexuais que independem de amores

Ilustração Contardo Calligaris
Mariza Dias Costa

Domingo, dia 18/3, às 21 horas, estreia na HBO a quarta temporada de "O Negócio". Infelizmente, será a última. A série conta a história de três amigas (quatro, agora) que se prostituem e encaram sua profissão sem culpa.

A temporada atual começa com um episódio (às vezes, hilário) em que as amigas precisam contar a história de seu sucesso para seus respectivos familiares. Enfim, na saída da pré-estreia, participei de uma conversa animada.

Uma amiga, por mais que tivesse se divertido com o episódio, queixava-se de que as mulheres do seriado são poderosas, sim, mas pela prostituição e pelo sexo. Não é mais um estereótipo machista?

Outra (eu concordava com ela) achava, ao contrário, que ali está o valor feminista do seriado: na desenvoltura com a qual as protagonistas praticam a prostituição (e, claro, o sexo sem afetos).

Prostituição pode ser empoderamento, sim ou não?

Para parte do movimento feminista, a prostituição seria sempre alienação e escravatura. E não adiantará lembrar que, para muitas mulheres, prostituir-se é uma fantasia erótica, pois sempre será possível responder que essa fantasia é induzida pelos espíritos "tortos" dos homens.

Tento responder. Na nossa cultura, o machismo se sustenta em dois pilares. Um é a subordinação jurídica, econômica e social da mulher. O outro é a negação da existência da sexualidade feminina, ou seja, a ideia de que a mulher não teria desejo sexual próprio ou, se ela tiver, seria só quando está apaixonada.

Essa ideia tem uma função: ela deixa os homens sossegados quanto à sua capacidade de satisfazer as mulheres (que mal teriam desejos) e quanto às chances de eles serem "corneados" por suas mulheres, nas esquinas e nos banheiros dos botecos com perfeitos desconhecidos. Pois elas não têm esse tipo de desejos, não é?

Na antiguidade pagã, as mulheres eram subordinadas e inferiorizadas como na modernidade. Chico Buarque deve ter proposto as mulheres de Atenas como exemplo porque a rima lhe caia bem: no mais, as atenienses eram vítimas de um machismo feroz. As que lutaram por sua liberdade e igualdade foram as romanas. Devo a Jack Holland a indicação do delicioso "Women's Life in Greece and Rome" (a vida das mulheres na Grécia e a Roma), uma compilação das fontes por Mary Lefkowitz e Maureen Fant (Johns Hopkins Univ. Press).

Augusto (o imperador, não o palhaço) instituiu leis pelas quais um homem era proibido de ter relações sexuais fora do casamento, salvo com prostitutas. E às mulheres, obviamente, não era permitido ter relações fora do casamento, se não fossem prostitutas. Um grupo de mulheres atrevidas se inscreveu, então, no registro das prostitutas da cidade, de modo a poder exercer sua sexualidade livremente. O sucessor de Augusto, Tiberio, teve que proibir por lei que as mulheres patrícias se declarassem como prostitutas.

Esse pequeno grupo de romanas são, para mim, as primeiras feministas; declarando-se prostitutas, elas emanciparam sua sexualidade.

Claro, o feminismo das romanas se chocou de frente com o cristianismo nascente, que declarou guerra aos prazeres e especificamente à sexualidade feminina.

Um exemplo. Zeus se transformava em animal para deitar-se com as mortais que ele desejava. Com Leda ele se transformou em cisne (tiveram filhos ilustres, aliás —entre eles Helena de Troia). Para os gregos, o amplexo de Leda e Zeus era carnal e sensual. Lembro-me do encanto de Leda numa famosa réplica romana de um original grego de 300 a.C.

É bom pensar nessa estátua sensual e lasciva ao considerarmos que, desde então, durante 15 séculos ou mais, vários idosos barbudos (ou não), decididos a reprimir sua própria sexualidade, reuniram-se periodicamente em Concílios para decretar que Maria era mãe de deus (441 d.C.), e que fora fecundada pelo espírito santo (um pombo), mas ficara virgem, antes, durante e depois do nascimento do filho.

E mais isto: no ato com o pombo, contrariamente ao que aconteceu com Leda e o cisne, Maria não sentiu nada mesmo, por ser isenta de pecado original e, portanto, de desejo sexual (1854).

Resumindo, como lembraram as romanas na época de Augusto, a prostituição é, sim, uma forma de empoderamento, se ela pode nos lembrar que as mulheres têm desejos sexuais e que esses não dependem de amores e apaixonamentos. A prova disso, aliás, é que as mulheres podem gostar de cisnes e pombos.

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