Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Contardo Calligaris

As mulheres têm desejos e fantasias

A repressão do desejo sexual feminino tem seus dias contados

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Não me lembro mais quem me sugeriu ler o monólogo de Molly Bloom, que conclui "Ulisses", de James Joyce. Foi um colega de classe, sem dúvida, e a recomendação era, digamos, salaz. Eu tinha 12 anos e o livro estava na biblioteca dos meus pais, em italiano.

Li às escondidas. Dizer que a leitura excitou meu jovem cérebro (e o corpo que ele pretendia comandar) é dizer pouco. Mas cuidado: a excitação não vinha do conteúdo dos pensamentos de Molly —suas entregas amorosas. Mesmo naquela época, nada ou pouco disso seria uma surpresa para mim, leitor ávido de livros não indicados para minha idade. O que me pegou forte foi o fato de se tratar do monólogo de uma mulher.

Eu entendia que "Ulisses" tinha sido escrito por um homem, James Joyce, mas será que ele tinha inventado tudo ou será que as mulheres podiam pensar mesmo daquele jeito? De onde Joyce tiraria a ideia do monólogo de Molly, se não de um conhecimento das mulheres que talvez ele tivesse e eu não?

Ilustração
Luciano Salles/Folhapress

Obviamente, um escritor (tarado) poderia colocar na boca de Molly um monólogo parecido com o que ele gostaria que as mulheres pensassem e falassem, mas muito diferente do que as mulheres de fato pensam e falam. Mas se não fosse assim? Se as mulheres todas fossem parecidas com Molly e capazes de monologar como ela? Minha mãe? Minha avó? Caramba.

Quando voltei a Joyce (e trabalhei sobre "Ulisses"), muitos anos depois, aprendi que minha excitação da infância era justificada: parágrafos inteiros do monólogo são inspirados nas cartas de Nora, mulher de Joyce.

Enfim, naquele começo dos anos 1960, para mim (e para quase todos os meninos), imaginar que uma mulher pensasse em sexo, tivesse desejos e fantasias que nem a gente, isso era um escândalo —excitante, mas um escândalo. Uma crença bem estabelecida nos dizia que fantasias e desejos sexuais eram coisas de homem, só de homem.

Teria sido bom saber que Anaïs Nin escrevia "Delta de Vênus" (Artenova) mais ou menos quando Molly monologava, mas o livro só chegou no fim dos anos 1970.

Eu tive sorte. Ao longo dos anos 1960 (e mesmo depois) encontrei, namorei e amei mulheres pouco conformadas com a repressão dos desejos e das fantasias sexuais femininos.

Além disso, no fim da década de 1960 (embora o livro circulasse desde 1954), li "A História de O" (Brasiliense e Ediouro).

Talvez seja "A" obra-prima da literatura erótica de todas as épocas e línguas. Como foi assinado por um pseudônimo (Pauline Réage), falava-se muito que fosse a obra de Jean Paulhan, que redigiu o prefácio. Afinal, pensava-se, a fantasia de submissão da heroína só podia ser obra de um homem; aliás, todo erotismo e toda pornografia só podiam ser obras de homens.

Em 1994, Anne Desclos (uma grande tradutora e editora e, durante a guerra, heroína da resistência antinazista) revelou ser a autora de "A História de O". Ela também contou que escreveu o livro em resposta a uma frase de Jean Paulhan, seu amante, segundo quem as mulheres não seriam capazes de escrever romances eróticos.

Algo análogo aconteceu com o romance erótico superpop dos anos 1970, "Emmanuelle". Ninguém descansou até comprovar que fora escrito pelo marido de Emmanuelle Arsan, e não por ela. Mas o "alívio" não durou muito: o marido foi mais escriba do que autor, ou seja, escreveu as aventuras da mulher.

Desde então, a lista continua e é longa: de Régine Deforges, nos anos 1980, até o maravilhoso "No Jardim do Ogre", de Leïla Slimani, e o delicioso novo livro de Elizabeth Gilbert (a autora de "Comer, Rezar, Amar"), "Cidade das Garotas" (Alfaguara). Isso sem esquecer a série, também superpop, dos "Cinquenta Tons", de E.L. James.

Enfim, é impossível não constatar que o erotismo do século 20 é feminino. E o do século 21 também se anuncia assim.

A expressão "literatura erótica feminina" se tornou hoje um pleonasmo, pois toda literatura erótica parece ser feminina.

Na semana passada, escrevi sobre Najila e Neymar para dizer que, aparentemente, para os homens, Najila podia ser ardilosa ou interesseira, mas desejante nem pensar.

Alguns leitores me escreveram para explicar que eu estava enganado: não tem essa de mulher que fantasia e deseja como homem. Sexo para a mulher é só por amor ou por dinheiro, não tem essa de vontade de transar.

Pois é. Esse tipo de repressão do desejo sexual feminino tem seus dias contados. Melhor ler e se preparar...

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.