Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Contardo Calligaris

Como se justifica, ou não, o intervencionismo ocidental no Oriente Médio?

Eu não invadiria país algum, mesmo que ele fosse ridiculamente teocrático

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Intervir na vida dos outros é uma decisão que acarreta uma certa sensação de onipotência. Eu venho aí e endireito os tortos, e vocês vão me amar por isso. É assim que pensava (e talvez ainda pense) boa parte dos cristãos, a partir do século 4 de nossa era: minha espada está machucando, mas é tudo por amor, quero apenas “salvar” vocês. 

Os comunistas pensavam parecido: os stalinistas massacraram os camponeses, e os cambojanos de Pol Pot massacraram, ao contrário, os habitantes das cidades. Eles e os cristãos se metiam nas vidas dos outros para realizar algum bem “superior”.

Vivemos, no Brasil, dias paradoxais: um governo que se pretende liberal não para de querer intervir na vida concreta da gente (atitude que é o contrário do liberalismo). 

Tudo isso em nome de Cristo, que não tem sequer como se revirar no caixão porque, como sabemos, ele ressuscitou faz tempos. 

Ilustração de uma pessoa parada sobre um trampolim, à beira de uma piscina
Luciano Salles

Em 1968, durante a Primavera de Praga, enquanto os soviéticos esmagavam as aspirações libertárias dos tchecoslovacos, apareceu uma escrita famosa: “Lênin, acorda, eles enlouqueceram”. Lênin não acordou. 

Hoje, aqui, poderíamos tentar um “Cristo, volta, os caras enlouqueceram: te confundem com aquele fanático Paulo de Tarso, que odiava o corpo e o sexo”. Não acho que teríamos mais sorte do que com Lênin.

Talvez Cristo e Lênin tenham mais o que fazer: eles não nos escutam. Mas pode ser que eles se calem por vergonha, por se sentirem culpados pelas boçalidades que são praticadas em nome deles. 

Fato engraçado. A coisa mais parecida com um comunista bolchevique é um cristão integrista: ambos matam e reprimem para impor sua ideologia ao mundo e ambos pretendem que suas próprias crenças não são ideologias, mas teorias científicas ou palavras divinas (enquanto ambos denunciam as crenças de suas vítimas como ideologias perniciosas).

Enfim, é difícil intervir na vida dos outros sem ser boçal, ou seja, sem lhes impor nossa maneira de viver e pensar como se fosse a verdade. Ao mesmo tempo, é difícil não intervir —sobretudo quando alguns (ou muitos) dos outros gritam “socorro”.

Em 1970, em Paris, meu vizinho deixava seu cachorro trancado em casa todos os dias. O bicho latia desesperado. Eu não considerei que fosse um pedido de ajuda suficiente para intervir. O mesmo vizinho, a cada noite, voltava para casa e não saía com o cachorro, mas batia nele porque (ele gritava) esse “porco” fazia suas necessidades dentro de casa.

No fim, liguei para a sociedade protetora dos animais.

Perguntas. Será que eu deveria esperar para ver se o bicho acabaria um dia mordendo seu dono, sem ajuda externa? Será que o cachorro foi adotado ou  esperou duas semanas numa gaiola e foi, enfim, eutanasiado?

Agora, que tal se o vizinho pertencesse a uma cultura muito diferente da minha e, sei lá, estivesse se preparando para sacrificar e comer o cachorro nas festas do fim de ano? Vai que ele não passeava com seu bicho porque queria que engordasse. Por que eu não reconheceria a legitimidade de seus “costumes”?

A simpatia pelos “costumes diferentes” animou, por exemplo, Michel Foucault quando, em 1978, defendeu o regime dos aiatolás iranianos sem a menor consideração por aqueles que seriam vítimas do tal regime.

Ele, homossexual e libertário, conseguiu assim a ingenuidade (ou a estupidez) de defender um regime que perseguiria e massacraria com gosto mulheres e homens que pretendiam viver segundo seus desejos, e não segundo a imposição dos sisudos intérpretes da religião oficial.

Resumindo, na minha “doutrina” intervencionista, em tese, eu não invadiria país algum, mesmo que ele fosse ridiculamente teocrático. Que o próprio povo encontre a coragem de morder a mão que o afaga e tortura. Mas eu tampouco resistiria aos gritos dos oprimidos: ou seja, invadiria e obliteraria um país cujo governo e povo se deleitassem em condenar os adúlteros (e sobretudo as adúlteras) à morte por apedrejamento.

Levantar dilemas morais (do tipo “você interviria no caso em que..?”) é uma condição prévia para julgar honestamente a política intervencionista (ou não) do Ocidente, especificamente no Oriente Médio.

Três dias antes do assassinato de Qassim Suleimani e Abu Mehdi, em Bagdá, por um drone dos Estados Unidos, visitei uma grande exposição no anexo PS1 do Museu de Arte Moderna de Nova York, no Queens: “Theater of Operations: The Gulf Wars 1991-2011” (teatro de operações, as guerras do Golfo). Relato na próxima quinta.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.