Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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Gelo e gim

Coquetel superou racismo nos tempos do Cotton Club, no Harlem

Harlem é drinque que fazia a cabeça dos brancos ricos e famosos

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Encravado no Harlem, o Cotton Club era uma magnífica excrescência. Ao mesmo tempo em que apresentava em seus palcos a nata da arte afro-americana, com shows de Duke Ellington e Billie Holiday, entre muitos outros, proibia a entrada de negros, com raras exceções. Os artistas tampouco tinham acesso à plateia, sendo obrigados a sair por uma porta lateral após as apresentações.

Tal absurdo, patrocinado pela máfia, acontecia no período do Harlem Renaissance, entre os anos 1920 e 1930, em que músicos, pintores, dramaturgos, poetas e intelectuais negros brilharam com grande intensidade, num movimento que influenciaria todas as gerações posteriores de artistas negros, dentro e fora dos EUA.

O bar Cotton Club, no Harlem
O bar Cotton Club, no Harlem - Reprodução

O escritor (e militante comunista) Langston Hughes era o personagem central dessa revolução, que ousava contrapor ao sistema segregacionista dos EUA uma nova linguagem, releitura pulsante e moderna da cultura dos escravizados libertos e seus descendentes, os mesmos que ocuparam e transformaram o belo bairro na ponta uptown de Manhattan.

Convidado ao Cotton Club, cuja decoração remetia às plantações de algodão, Hughes ficou horrorizado com a objetificação do corpo negro e a presença exclusiva da elite branca nas mesas, onde figurões estufavam seus smokings e alvas socialites ostentavam drinques luminosos, cortesia do chefão Owney Madden. Proprietário do lugar e contrabandista, driblava a Lei Seca com propinas e achaques.

Curiosamente, o Cotton Club, cuja história é contada no bem-intencionado e caótico filme dirigido por Coppola, começou como restaurante de Jack Johnson, lenda negra do boxe, eternizado num dos melhores discos de Miles Davis. Os gângsteres foram tomando conta, com a sutileza habitual, e o dinheiro cantou mais alto.

Capa de 'Jack Johnson', de Miles Davis
Capa de 'A Tribute to Jack Johnson', de Miles Davis - Reprodução

Um dos coquetéis que faziam a cabeça dos brancos ricos e famosos como Chaplin e Gloria Swanson, que não perdiam um show de Lena Horne ou Fletcher Henderson no Cotton Club, tinha o nome do bairro e era consumido também nos demais speakeasies e cabarés da vizinhança, aos quais os moradores tinham acesso.

Hughes, cujo bisavô tinha uma destilaria, certamente tomou alguns, talvez na companhia de seus pares do Renascimento, como a escritora Zora Neale Hurston e a poeta e pintora Gwendolyn B. Bennett, com quem criou o jornal literário Fire!!

Outra das grandes parceiras de Hughes foi a pianista e compositora Margaret Bonds, que faria 110 anos neste dia 3. Ela foi uma das primeiras solistas da Sinfônica de Chicago e criou vários musicais com letras do amigo, alguns deles adaptados de Shakespeare à realidade do Harlem. Foi também uma importante incentivadora de jovens talentos afro-americanos.

Há obras dela em streaming. Poucas, infelizmente, já que boa parte de sua produção se perdeu. O que se percebe é uma estimulante mistura de gospel, blues, jazz e música clássica —se estivesse livre das barreiras raciais, quem sabe teria a mesma sorte de Gershwin?

"Garota, aproveite e toque sua canção! A hora é agora! Amanhã é escuridão." O brinde à parcialmente esquecida Bonds, em tradução livre, é o lembrete de Hughes no poema "Harlem Night Club", de 1926, ligeiramente alterado —por um bom motivo. Segue o original:

"Jazz girl, jazz girl–

Play, plAY, PLAY!

Tomorrow…Is darkness.

Joy today!"


Harlem

60 ml de gim

22,5 ml de suco fresco de abacaxi

7,5 ml de licor marrasquino

2 espirradas de limão

Bata os ingredientes com gelo e coe para uma taça martini. Use um pedaço de abacaxi como guarnição.

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