"Quando o inverno chegar, eu quero estar junto a ti." Chegou. Se não houver "ti" e o vozeirão do Tim não for suficiente, vá de irish coffee —é garantia para esquentar a alma, nem que seja um pouco.
O caife gaelach, em bom irlandês, foi inventado em 1942, no antigo aeroporto de Foynes, na Irlanda, para animar turistas depois que o hidroavião em que estavam teve de pousar na baía novamente, acossado por uma tempestade. O chef do aeroporto decidiu acrescentar uísque ao café. Assim, com o hidroavião estacionado, foram os turistas que decolaram.
Dez anos depois, a receita acabou nas mãos de um dono de bar em San Francisco, o Buena Vista, que chamou o chef de Foynes para garantir a textura certa do creme no topo. A bebida virou mania nos EUA e no mundo, alavancando as vendas do uísque irlandês, que andava esquecido desde que a guerra civil dividiu o país, em 1922, dificultando a produção nos alambiques.
Antes muito popular, é anterior ao escocês, sendo um dos primeiros destilados da história. Monges do Eire trouxeram a técnica de destilação de viagens ao Mediterrâneo no século 14. Um consolo para os horrores da Peste Negra.
Em termos gerais, a diferença entre ambos uísques é simples: enquanto os escoceses destilam o malte duas vezes, os irlandeses o fazem três vezes —e com outros grãos. O resultado é uma bebida mais suave. Nos áureos tempos, o pai de Joyce teve uma destilaria. A experiência vazou para dentro do "Ulisses".
Kingsley Amis, devoto do irish coffee, assim como de outras trezentas misturas, explica, no seu "Everyday Drinking", que é um drinque difícil de preparar, tanto por conta da quantidade de açúcar quanto pelo equilíbrio do creme —o toque final. Citando um amigo, recomenda que, se o creme se misturar à bebida, é melhor não servir —beba o drinque errado de um gole e prepare outro.
Faz todo sentido. Afinal, a exata camada de creme é a fronteira que separa a realidade fria do afago quente aos sentidos. Uma fantasia realizada, diriam os fãs fervorosos. Dentre eles, John Cheever. Consta que, numa viagem à Irlanda, bateu o carro. Enquanto esperava socorro, bebeu vários irish coffees num bar na estrada. Animado, compôs uma cantiga para o uísque irlandês, poção mágica de um certo cavaleiro errante.
É algo que parece se repetir com escritores. Balzac tomava cerca de 40 xícaras de café por dia. Era seu combustível para dar conta de toda a "Comédia Humana". Dizem que morreu disso. Em "Pai Goriot", faz menção à glória, não aquela perseguida por vaidosos, sonhadores e celerados, mas um amálgama semelhante, com café e conhaque ou rum.
Flaubert faria o mesmo. Em "Madame Bovary", lê-se: "gostava de boa sidra, pernil de cordeiro mal passado e glórias bem batidas." Como se vê, o pai da desditosa Emma curtia os prazeres da mesa, incluindo o irish coffe à francesa. Na Viena de Egon Schiele e Robert Musil, essa glória também era comum, sob o nome pharisäer.
Eternamente insatisfeita, Emma Bovary teve fim inglório. Em outro tempo, se aceitasse a rosa trazida por Monsieur Maia, talvez visse a próxima primavera. E bebesse bons irish coffees.
IRISH COFFEE
45 ml de uísque irlandês (não serve outro)
90 ml de café
10 ml de xarope de açúcar mascavo
20 ml de creme de leite
Esquente a taça com água fervente e descarte. Ponha os três primeiros ingredientes e mexa. Bata o creme de leite num pote até o volume aumentar em cerca de ⅓. Despeje-o lentamente em uma colher, de forma a manter a camada de creme sobre a bebida.
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