Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Gelo e gim

As aventuras etílicas de Vinicius de Moraes em Londres

Na austera Universidade de Oxford, ele vinha penando para entender o 'Beowulf'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ainda faltavam 20 anos para o surgimento da bossa nova. Vinicius estava na Inglaterra. Havia recebido uma bolsa para estudar língua e literatura britânicas em Oxford. Aos 24, tinha o mundo pela frente. Muito desse mundo se passaria em bares ou entre lençóis, com livros em volta e o violão. Beber, amar, tocar. Precisa mais?

Numa de suas "Crônicas Inéditas" (org. de Eucanaã Ferraz e Eduardo Coelho, Companhia das Letras), ele conjuga os dois primeiros verbos com volúpia pós-adolescente. O contexto não era dos mais sedutores, porém. A Segunda Guerra Mundial ameaçava estourar a qualquer momento —"gigantescas máquinas dentadas se aproximavam…".

Na austera Universidade de Oxford, Vinicius vinha penando para entender o "Beowulf" e a etiqueta bretã. No jantar inaugural, sob o olhar atento de Dumbledores e Snapes, cometeu alguma gafe. Seu castigo foi beber de um caneco gigantesco, com cerveja suficiente para "afogar um recém-nascido". Metade da poção goela abaixo, achou que botaria "cerveja pelos ouvidos", mas foi até o fim e acabou aplaudido pelos colegas. Hurray!

Experimentaria outra vez a entusiástica torcida daqueles que logo estariam nas trincheiras. Foi, como detalha "Pileque em Picadilly", ao exibir-se para uma certa "amiga vestida de verde". Do alto de umas pints e outro tanto de uísque , sobe pela vertiginosa escada rolante do underground londrino no sentido contrário. "Come on, old fellow!", incentivam os ingleses em volta.

No fim da escalada, decide escorregar, a "uma velocidade mais rápida que o pensamento", pela "tábua lisa, tão bem envernizada" que cobria o vão entre as escadas. Talvez aí, o uísque tenha de fato escorrido pelas orelhas.

Antes, no quarto em que estava hospedado, Vinicius abre uma das garrafas de sherry (jerez) que tinha comprado no pub ao lado, para satisfazer a sede da amiga. "Minha carne fez-se imaterial ao servir eu o primeiro cálice de sherry". À guisa de brinde, "quis o amor" que o tim-tim viesse na forma de um "longo beijo cheio de renúncia física".

A mistura do tom informal ao elevado serve ao romantismo exagerado, juvenil. E então o poetinha observa, com propriedade de ávido bebedor: "O sherry é uma bebida indigna, porque doce, mas extremamente plástica, assumindo com perfeição a forma do interior da boca". O calor da bebida faz nascer "duas rosas na face" da amiga de verde.

A essa altura, ela no sherry, ele no uísque, "a cúpula do Museu Victoria and Albert, visível da janela, desdobrou-se em duas ou três, violentamente agitadas pela distensão das minhas células".

Flutuando nos fumos alcoólicos, decidem ir ao Café Royal, bar-restaurante referência em Londres, onde Oscar Wilde, que hoje nomeia um de seus salões, batia ponto. Virginia Woolf, Muhammad Ali e David Bowie são outros de seus visitantes ilustres. Sem libras nos bolsos, Vinicius, apenas um poeta premiado, pediu fiado.

O Dot é uma das receitas do "Café Royal Cocktail Book", de 1937, um ano antes dos episódios dessa crônica. O indigno sherry puxa o carro.

Na mesma Oxford onde Vinicius devorava Keats, escrevia boa parte de seu "Poemas, Sonetos e Baladas" e apanhava no boxe, Jason Clapham, professor de inglês, adaptou as indicações originais, trocando o Cointreau pelo rum. É bom, mas a mistura quase centenária é ainda melhor.


DOT

30 ml de gim

15 ml de jerez fino

7,5 ml de brandy de damasco

7,5 ml de licor de laranja

Mexa os ingredientes com gelo e coe para uma taça coupe gelada.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.