Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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Gelo e gim

O diabo bebe nas vielas de Nova Orleans

Ali surgiu o brandy crusta, que originou a linhagem de misturas com sucos cítricos

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Da parede, Louis Armstrong olhava a vitrola imóvel. Apesar do retrato pendurado, seus discos eram proibidos na casa. Música alegre, dançante, criativa… coisa boa não podia ser. Em "Notas de um Filho Nativo", James Baldwin lembra do padrasto severo com remorso. Ainda que discordasse frontalmente de sua postura fechada, sentia que teria sido bom conhecê-lo melhor.

Saber, por exemplo, como foi sua juventude na Nova Orleans natal, região de sombrio passado escravagista, ele que fez parte da primeira geração de pessoas negras livres. Saber se ele trombou com Armstrong, seu possível desafeto, na rua ou na igreja, onde o trompetista calejou as cordas vocais. E se havia alguma birra específica.

Nova Orleans era então a maior cidade do sul dos EUA —a terceira maior do país. Pregador batista, o padrasto via a agitação feérica dos bares, salões e bordeis com olhos de pedra. "Eu não conseguia deixar de pensar em Nova Orleans como Sodoma e Gomorra", anota o escritor.

A prática do vodu, com o uso do sangue de galos e bodes para a purificação dos devotos, além de lendas envolvendo mortos-vivos, não devem ter deixado uma imagem melhor para o pio pastor. O próprio jazz teria sido batizado em pia infernal. Diz-se que a madrinha do compositor Jelly Roll Morton, outro nativo de Nova Orleans, vendeu a alma do afilhado ao diabo para que ele tivesse talento nas teclas de marfim.

Morton tornou-se a pimenta vermelha das rodas elegantes, o pai da matéria. Ficou famoso e rico, como atestam os diamantes nos dentes. No leito de morte, pediu água benta para enganar aquele que buscaria sua alma. Tomara que tenha conseguido.

Dostoiévski e Tom & Jerry já lembravam que deus e o diabo estão sempre em luta no campo de batalha do coração humano. O fato é que a cidade cresceu sobre fortes alicerces afro-caribenhos e europeus, tornando-se meca do hedonismo —satânico ou celestial, a depender do freguês.

Na década de 1850, imediatamente antes da Guerra Civil, e depois de Tiana, de "A Princesa e o Sapo", Santini, imigrante de Trieste, abriu o Jewel of the South no bairro francês, epicentro da boemia. Virou o principal bartender da região. Muitos de seus clientes chegavam de barco a vapor pelo Mississipi —como os personagens do último livro de Herman Melville, "The Confidence-Man", de 1857, também com cores mefistofélicas.

Seus feitos não devem ter sido poucos, pois é o único criador de coquetéis nomeado na bíblia de evangelhos etílicos do pioneiro-mor Jerry Thomas, "The Bar-Tenders Guide", de 1862.

Dentre suas receitas ali impressas, está a do brandy crusta, um dos maiores clássicos da coquetelaria, que originou a linhagem de misturas feitas com sucos cítricos. É o ancestral, por exemplo, do sidecar e do margarita. Andava esquecido, até ser redescoberto neste século —o Jewel of the South, inclusive, foi reaberto e já está entre os 50 melhores bares do mundo.

Fachada do Jewel of the South, em Nova Orleans
Fachada do Jewel of the South, em Nova Orleans - www.prcno.org

O escritor Boris Vian, também trompetista, pontuava que só existem duas coisas importantes no mundo: "o amor, em todas suas formas, e a música de Nova Orleans". Com Louis Armstrong na vitrola, os olhos fechados e um coquetel na mão, é difícil discordar.


BRANDY CRUSTA

60 ml de conhaque

7,5 ml de licor de laranja

7,5 ml de licor marrasquino

15 ml de suco de limão siciliano

20 ml de xarope de açúcar

2 lances de Angostura

Com ajuda do limão, prepare uma borda de açúcar (crosta) numa taça coupe. Bata os ingredientes com gelo e coe para a taça. Finalize com uma longa casca de limão.

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