Daniel Furlan

Ator, comediante e roteirista, é um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o programa "Choque de Cultura".

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Daniel Furlan

O resgate do bilhetinho

Durante meses observei em silêncio essa comunicação clandestina

Ilustração
Luciano Salles

Não há mensagem mais interessante do que a que não foi escrita para a gente. 

Especialmente na 7ª série, quando misteriosos pedaços de papel iam e vinham nas mãos das alunas ao meu lado, em fluxo clandestino, alheio à aula. Seria sobre algo escandaloso? Seria sobre mim? Faria sentido, porque eu nunca recebia nenhum. Talvez fossem mesmo sobre mim.

Durante meses observei em silêncio essa comunicação clandestina, aguardando um desleixo, mas os bilhetes eram destruídos imediatamente após serem lidos. 

Meninas da 7ª série são profissionais da área dos bilhetinhos. Mas um dia alguém cometeria um erro.

O sinal do recreio tocou em meio a uma troca de bilhetinhos. No meio da confusão, a receptora se sentiu segura o suficiente para simplesmente amassá-lo e jogá-lo na lixeira da sala. Ninguém estaria observando, afinal cada um estaria cuidado de seus assuntos. Mas um menino de 13 anos não tem assuntos. 

Ele tem sim o tempo livre e o desinteresse no currículo escolar necessários para observar toda essa movimentação e resgatar o bilhete da lata de lixo.

Mas nem todos desceram e eu não poderia simplesmente me expor revirando a lixeira. Arranquei várias páginas do meu livro e fiz uma grande bola de papel. O plano era arremessá-la na lixeira e retirá-la junto com o bilhetinho.

Foi o que eu fiz. E lá no fundo estava o bilhete, mas falhei em retirá-lo sem ter que revirar o lixo, chamando atenção.

Tive que fazer um novo arremesso e isso se repetiu até o sinal do fim do recreio. Na última tentativa, respirei fundo e enfiei o braço inteiro no lixo, resgatando o bilhete, junto com uma série de detritos.

Voltei para a minha mesa, discretamente coloquei o papel na calça e fiz o que fazia melhor: esperei o dia acabar. 

Mas o sinal da saída não foi suficiente para uma leitura segura. No ponto de ônibus, até pensei, mas a presença de outros estudantes me fez esperar. Nem o ônibus quase vazio me deu tranquilidade.

Ainda na porta de casa, saquei o bilhete com resquícios de lixo. Eram muitas dobras no minúsculo pedaço de papel escrito com letras na cor roxa e aroma de chiclete rosa:

"De Viviane
Para Renata
No recreio vamos conversar? Não vamos conversar com a Taís, ela é muito chata."

Era isso.

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