Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

A 'dama' passeia, na lua cheia

Verdadeiro perigo não está em Luciane, mas na incompetência estatal

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Flávio Dino rejeitou qualquer responsabilidade, direta ou indireta. Olímpico, qualificou as críticas como "um Redoxon em uma piscina olímpica". Lula também não viu nada de especial na livre circulação de Luciane Farias, a "Dama do Tráfico", pelas salas de reunião do Ministério da Justiça. No seu tuíte de solidariedade a Dino, resolveu fingir que as cobranças de explicações partem de "criminosos e seus aliados". Como seu ministro, o presidente tenta evadir-se pela rota de fuga da retórica balofa.

As andanças de Luciane nos corredores do poder têm, em si mesmas, escassa relevância. Não se pode dizer o mesmo da arrogância das autoridades. Os políticos que se negam a admitir erros clamorosos são, também, incapazes de cartografar os tentáculos públicos do crime organizado. O verdadeiro perigo não está na tal "dama", mas na incompetência estatal.

Captura de tela da publicação de Luciane Barbosa Farias no 4º Encontro Nacional dos Comitês de Prevenção e Combate à Tortura e Mecanismos de Prevenção e Combate à Tortura
Captura de tela da publicação de Luciane Barbosa Farias no 4º Encontro Nacional dos Comitês de Prevenção e Combate à Tortura e Mecanismos de Prevenção e Combate à Tortura - Reprodução/luhfariasoficial no Instagram

Dino não é bobo. Quando não sobe a um palanque imaginário de aldeia para vociferar sobre o "ouro roubado" por Portugal, ele diz as coisas certas. O combate ao crime organizado depende de informação. Suas ferramentas são inteligência policial e financeira. Não adianta exercitar a brutalidade policial nas periferias e favelas: é preciso sufocar as facções, cortando suas artérias vitais. Mas como realizar esse programa sem, ao menos, identificar uma agente óbvia do CV que usa a fantasia de defensora dos direitos dos presidiários?

A "dama" fez seu caminho até os gabinetes do poder à base de carteiradas, método infalível nas engrenagens do Estado brasileiro. Meses depois das várias reuniões com secretários do Ministério da Justiça, participou de um encontro no Ministério dos Direitos Humanos com passagens e diárias pagas pelo contribuinte. Silvio Almeida, o ministro responsável pelo encontro, não se deu por achado, imitando Dino tanto no conteúdo como na forma. Segundo ele, os críticos da zorra ministerial seriam "próceres do fascismo à brasileira".

Fascismo é uma morfologia específica do Estado autoritário. Para Almeida, porém, é um amuleto mágico que o protege de qualquer crítica política. "Chame-os de comunistas e corra para o abraço", ensina o manual bolsonarista de guerrilha nas redes. A versão modificada substitui apenas "comunistas" por "fascistas". Falta, à turma que nos governa, vergonha na cara.

O termo "mexicanização", no contexto do desafio posto pelos cartéis do narcotráfico, significa muito mais que a expansão territorial do crime organizado. De fato, o fenômeno singular é a infiltração das organizações criminosas nas instituições estatais. O crime não é forte porque tem armas, mas tem armas porque é forte –ou seja, por ter instalado casamatas nos órgãos de governo, nas Casas legislativas e nos aparelhos judiciários e policiais.

A infiltração avançou a passos largos durante o criminoso desgoverno bolsonarista. Hoje, sob um governo sem laços com o crime, nada indica uma reversão. Pelo contrário: os passeios da "dama" nas esplanadas de Brasília formam o pico emerso de uma montanha submarina.

Faça como o México –e colherá "mexicanização". Num México atordoado pelos cartéis, sucessivos governos apelaram à suposta salvação oferecida pelo Exército. O resultado foi a infiltração do narcotráfico nas Forças Armadas e uma explosão de corrupção militar. Lula segue o péssimo exemplo ao decretar a GLO em portos e aeroportos. O gesto, um reconhecimento tácito da falência das forças policiais, não tem nenhuma chance de dar certo –e seu fruto menos desastroso seria o encerramento infrutífero da operação no fatídico 3 de maio.

Combate-se o crime organizado com ações integradas de inteligência. Na falta de inteligência, o governo esconde-se atrás de uma GLO improvisada e desvia a atenção de seus fracassos bombardeando as redes sociais com discursos histéricos. E, contudo, a "dama" passeia, na lua cheia.

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