Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

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Desigualdades
Descrição de chapéu desigualdade de gênero aborto

Não aguentamos nem mais um pouquinho

Casos recentes demonstram vulnerabilidade das mulheres à violência institucional praticada por agentes dos sistemas de saúde e de justiça

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Janaína Matida

Professora de Direito da Universidad Alberto Hurtado e consultora do projeto Prova sob Suspeita, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

Marina Dias

Diretora executiva do IDDD e presidente da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB/SP

Priscila Pamela

Advogada criminal e diretora do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

Nos últimos dias, vieram a público dois casos que escancaram o cotidiano de violências experimentadas por mulheres, adolescentes e crianças vítimas de estupro em decorrência de más condutas de agentes públicos, especialmente do sistema de saúde e justiça, que ignoraram seus direitos.

No domingo retrasado (19), o The Intercept Brasil veiculou o caso da menina de 11 anos impedida por uma juíza de fazer um aborto legal. A reportagem traz áudios que revelam a ação conjunta da magistrada e da promotora tentando induzir a criança a dar à luz e, em seguida, entregar o bebê para adoção. Já no sábado passado (25), a atriz Klara Castanho, 21, viu-se obrigada a assumir em suas redes sociais que, diante de um estupro sofrido, levou a gravidez ao fim e deu a criança para adoção.

Não há comportamento correto quando somos mulheres. No início da semana, exigiu-se da menina levar gravidez até o fim e entregar para adoção; no fim da mesma semana a exigência foi oposta. Afinal, a atriz teve o bebê! O julgamento rotineiro é implacável, assim como é patente a falta de formação de agentes públicos para acolher mulheres vítimas de violência sexual, de forma a evitar processos traumáticos de revitimização.

Klara Castanho, atriz
O caso da atriz Klara Castanho e o da menina de 11 anos de Santa Catarina evidenciam uma sucessão de violações de direitos longe de ser exceção - @klaracastanho no Instagram

Com relação à menina, no decorrer da semana, o cenário mudou. Frente à comoção pública, a criança que tinha sido levada para um abrigo, por ordem judicial, foi devolvida aos cuidados de sua mãe; em seguida, o procedimento ao qual ela desde sempre teve direito foi finalmente realizado. Tanto o caso da criança de 11 anos quanto o da jovem atriz evidenciam uma sucessão de violações de direitos longe de ser exceção, e, por isso, não podemos nos dar ao luxo de respirar aliviadas.

Estudo da Rede Feminista de Saúde informa que, entre 2010 e 2019, em média a cada 20 minutos uma criança (menor de 14 anos) torna-se mãe no Brasil. O relatório Visível e Invisível, de 2021, embora tenha sido respondido por maiores de 16 anos, não deixa de funcionar como importante alerta, ao destacar que ao menos 24,4% das mulheres já haviam passado por alguma violência, que 72,8% dos autores eram previamente conhecidos pelas vítimas e que, em 48,8% dos casos, a violência ocorreu dentro das suas casas. Esses números são fortes indicativos da situação das crianças vitimizadas por violência, sendo que, comparativamente, elas têm ainda menos recursos para compreender e denunciar o que de criminoso é praticado contra elas.

O retrocesso não é exclusivo do Brasil. A sensação de caminhar para trás foi intensificada diante da recente decisão da Suprema Corte dos EUA que, na última sexta-feira, derrubou o precedente Roe vs. Wade, em vigor desde 1973, que estabelecia o direito constitucional das mulheres à interrupção da gestação.

Por meio de questionável interpretação literal da Constituição, o voto condutor do juiz Samuel Alito venceu por maioria (6 votos contra 3) e estabeleceu que cabe a cada Estado decidir se mantém o direito ou o proíbe. Foi uma vitória de um pensamento ultraconservador e que dá a exata dimensão da fragilidade dos direitos das mulheres.

É fato que, no atual momento político de nosso país, a legalização do direito ao aborto nos moldes de países como Argentina e Colômbia parece algo distante. No entanto, existem marcos legais importantes para garantir o acolhimento de vítimas de violência sexual. Um exemplo é a Lei da Escuta Protegida, que normatiza e organiza o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, estabelecendo o direito à escuta especializada, e que precisa ser observado pelo Judiciário para evitar a prática da violência institucional, como a que foi vivenciada pela menina.

Além disso, é fundamental fortalecer a rede de garantias, de forma a erradicar sabotagens decorrentes de condutas moralistas e antiéticas que não têm lugar num Estado laico, tampouco no ordenamento jurídico brasileiro.

Outro ponto que precisa de atenção é a forma como as investigações e processos judiciais são conduzidos. Sem qualquer atenção ao quadro de vulnerabilidade de vítimas de violência sexual, é comum que autoridades conduzam depoimentos partindo apenas de estereótipos e preconceitos. Estudos e experiências internacionais demonstram que existem métodos bem-sucedidos para obter informações de testemunhas, sem violações de direitos.

Um exemplo são os "Princípios Méndez", sobre entrevistas eficazes para investigação e coleta de informações. Suas orientações defendem que entrevistas baseadas em empatia produzem informações mais confiáveis e por isso mais úteis à correta reconstrução dos fatos. Quem conduz uma entrevista tem o dever ético de proteger os direitos e a dignidade das pessoas entrevistadas, além da integridade do processo. A garantia dos direitos de quem é ouvido está diretamente conectada à confiabilidade do processo, já que práticas abusivas podem levar à produção de informações falsas e, com isso, maximizar o risco de erros judiciais.

Já passou da hora de darmos um passo concreto na direção de promover mudanças profundas de modo a mitigar os efeitos do patriarcado, marcado por estruturas de poder, opressão e desigualdade. É preciso garantir diversidade racial e de gênero nas composições das instituições do sistema de justiça, hoje ambientes extremamente machistas, racistas e violentos.

As instituições precisam assumir um compromisso por uma mudança cultural e estrutural. É urgente uma política efetiva de diversidade que resgate valores como respeito, inclusão, pertencimento, equidade, horizontalidade e empatia, essenciais para uma sociedade justa e fraterna. Nós mulheres não aguentamos mais nem um pouquinho!

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