Desnutrição é como se o corpo comesse a si mesmo, explica especialista

Nutricionista com experiência na ONU tira dúvidas sobre doença que acomete yanomamis

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São Paulo

Nas últimas semanas, imagens de indígenas muito magros e doentes têm sido divulgadas para mostrar a situação de abandono a que os yanomamis foram submetidos nos últimos anos. E, em várias destas divulgações foi dito que estes adultos e crianças se encontram desnutridos.

A desnutrição é um quadro de saúde em que o corpo não recebe alimentos e nutrientes suficientes para se manter vivo e funcionando adequadamente —e, por nutrientes, entende-se vitaminas, fibras, gorduras e outros elementos contidos na nossa comida, e que são usados pelo organismo.

Criança yanomami internada com desnutrição grave no Hospital da Criança Santo Antonio em Boa Vista - 25.jan.2023-Lalo de Almeida/Folhapress

Quem explica o que é essa doença e quais são suas consequências é Rachel Francischi, nutricionista da ONU (Organização das Nações Unidas) de 2007 a 2012, e que hoje atua como nutricionista em dois consultórios em São Paulo.

Desnutrição é a mesma coisa que comer pouco?

O pouco e o muito dependem do tamanho e do corpo da pessoa. Por exemplo, você já deve ter percebido que um adulto pode comer uma quantidade muito maior do que uma criança come. Não é que a criança coma pouco e o adulto coma muito, eles comem a quantidade que precisam. Ficar desnutrido é comer menos do que o corpo precisa, não necessariamente pouco ou muito.

E como sabemos de quanto alimento o corpo precisa?

Uma criança precisa dos nutrientes para crescer, ganhar o peso adequado, se desenvolver perfeitamente, correr, brincar, aprender. Quando essas funções do crescimento normal da criança não estão acontecendo, ela está com sinais de que está comendo menos do que precisa. E isso pode levar à desnutrição.

Existe mais de um tipo de desnutrição?

A desnutrição pode acontecer em um momento curto, algo pontual, como quando estamos com uma virose e não conseguimos comer direito. Esta é uma desnutrição que é facilmente revertida assim que o corpo volta a receber os nutrientes.

A que estamos vendo no Brasil atual é uma desnutrição crônica, que é de muitos meses ou até anos em que o corpo não recebeu os nutrientes de que precisa e não está funcionando direito.

Se essa desnutrição acontece em crianças menores de dois anos de idade os danos são em grande medida irreversíveis. E, nos primeiros cinco anos de idade, ou numa gestante, numa mãe que amamenta etc, os efeitos da desnutrição são muito severos e podem causar doenças que vão durar a vida inteira, e até as próximas gerações.

Por que ficar desnutrido é perigoso para a saúde?

O mais grave é que [com a desnutrição] o cérebro não funciona adequadamente. Então, o pensamento, a memória e a inteligência ficam afetadas e diminuídas. Sabemos que crianças desnutridas têm mais taxas de reprovação na escola, por exemplo, que faltam mais, e que, quando adultas, têm empregos com menores salários, até. São repercussões para o resto da vida.

O crescimento, os ossos e músculos também não se desenvolvem adequadamente, e muitas vezes a criança não cresce, fica baixinha. Isso lá na frente é um fator de risco para obesidade e doenças metabólicas como diabetes. Uma criança e um adulto com desnutrição ficam mais doentes, têm mais viroses, e morrem mais do que as pessoas nutridas. Então, o principal problema da desnutrição é que ela aumenta o risco de morte.

Por que pessoas desnutridas ficam tão magras?

Porque o corpo consome todas as reservas de gordura e músculos para sobreviver. É como se o corpo "comesse" a si mesmo.

A desnutrição tem cura?

Sim. Isso é o mais triste, porque essa é uma condição que, com a vontade política e o acesso aos alimentos adequados e à água, ela não existe. Então, é uma doença muito mais da sociedade do que do corpo.

Para prevenir e tratar a desnutrição, basta comer qualquer tipo de alimento?

Não. A gente viu em reportagens que os indígenas até poderiam ter alguns peixes à disposição, mas os peixes estavam doentes, não eram adequados para consumir. E o que é um alimento adequado? É um alimento que veio da natureza, de um solo ou de uma água que não tenham contaminações nem poluições.

A desnutrição é diferente quando a gente é criança de quando a gente é adulto?

Sim. Quando a gente é criança as consequências são muito mais graves. O corpo da criança está em formação e desenvolvimento. O adulto ainda tem uma reserva e consegue suportar melhor por algum tempo os efeitos da desnutrição.

Mas, a criança em poucas semanas já pode ter seu desenvolvimento comprometido. Para mães que estão amamentando ou grávidas, a desnutrição é desastrosa, pois vai comprometer não só a saúde da mãe, mas a do bebezinho em formação.

Por que você acha que esses indígenas ficaram desnutridos?

O Brasil apresentava índices de desnutrição que foram melhorando gradualmente nas últimas cinco décadas através de políticas públicas que garantiram o acesso e o direito a uma alimentação adequada e saudável à maior parte das crianças e adultos.

Infelizmente, com as dificuldades que algumas comunidades estão tendo para conseguir alimento, e especialmente água e alimentos saudáveis, essas taxas de desnutrição voltaram a subir. Isso é uma vergonha mundial. A desnutrição, mais que um problema moral porque vemos seres humanos sofrendo de fome, custa aos cofres públicos uma quantia absurda.

Estes indígenas vão ficar bons de novo?

A vontade política e a capacidade dos agentes de saúde é o que vai responder a essa pergunta. Então, depende. É possível que eles fiquem, mas é preciso uma ação responsável, porque a solução para a desnutrição já existe, mas o difícil é as pessoas colocarem em prática para que todos esses indígenas possam ser curados, e para que as próximas gerações não sofram desse mesmo problema.

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