Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

A solidão institucional

Será que já perguntaram quais eram os sonhos das 'tias de limpeza'?

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Há algum tempo, eu venho pesquisando sobre o que chamo de solidão institucional da mulher negra.

Em 2018, participei do Programa Angela Davis para Professor Convidado, na Universidade Goethe, em Frankfurt, e parte da minha aula ministrada lá foi sobre esse tema. Há pesquisas importantes sobre a solidão afetiva das mulheres negras, que mostram que elas, sobretudo as de pele escura, não são vistas como pessoas para casamento ou relacionamentos mais duradouros, mas por um prisma da objetificação dos seus corpos. Porém, penso, a solidão para as mulheres negras é algo mais profundo.

Mulheres negras em trabalhos de faxineira ou servente são as “tias da limpeza”, as “tias do café”. Nem sequer são chamadas pelo nome, muitas vezes as pessoas nunca perguntaram. Só sabem que elas moram longe, mas nunca perguntaram onde. Não as tratam como seres humanos com histórias, significados, aprendizados, mas sempre com o olhar da condescendência para disfarçar a superioridade que sentem em relação a elas. Será que já perguntaram quais eram os sonhos delas? Ou naturalizaram o lugar que elas ocupam?

Ilustração de três mulheres negras, elas estão unidas no centro da imagem. Uma delas segura um livro
Publicada nesta sexta-feira, 1º de novembro de 2019 - Linoca Souza/Folhapress

Sempre me questiono o quanto é solitário, muitas vezes, ser a única pessoa que se incomoda quando, em espaços mais privilegiados, observa que as mulheres como eu não estão usufruindo e coexistindo, mas sempre servindo ou atendendo aos desejos de pessoas que nem sequer, muitas vezes, as olham nos olhos.

Eu imagino a solidão de nem sequer ser vista, de ser possível passar anos trabalhando em um lugar sem que as pessoas saibam o seu nome.

Lélia Gonzalez, grande intelectual negra brasileira, dizia que mulher negra tem de ter nome e sobrenome para que o racista não pusesse o nome que quisesse.

Antes de se casar com meu pai, minha mãe foi empregada doméstica, e me lembro de ela contar da solidão do elevador de serviço, do quartinho na área de serviço, de ter de agradecer efusivamente por ganhar casacos velhos.

Há também a solidão de ser “a primeira negra que…” ou “a única negra que…”. Para aquelas que, com muita dificuldade, conseguiram romper algumas barreiras, há a tristeza institucionalizada de olhar para o lado e ver poucas ou quase nenhuma como ela. 

As pessoas não imaginam o quão hostil é estar em um lugar em que só você é a pessoa negra ou é aquela que vai ser posta no lugar da chata agressiva porque só fala disso. De olhar para o lado e não perceber um olhar de acolhimento quando passa por situações discriminatórias. De ser desacreditada, atacada porque as pessoas esperam a queda de quem ousou sair do seu lugar. 

A solidão de ser sempre a negra agressiva e raivosa por exigir respeito. Ou de ser a metida porque anda de cabeça erguida. Ou ainda, a arrogante porque é decidida ou assertiva. Vocês já se questionaram de onde vêm certos incômodos ou por que tentam justificá-los atacando quem as incomodou?

Penso na solidão dos milhares de mães negras que perdem seus filhos cotidianamente por causa de uma política de segurança pública violenta. A solidão daquelas que sabem da falta de oportunidades de seus filhos, daquelas que tentam mostrar que os filhos eram trabalhadores. Essa solidão pode gerar adoecimentos psíquicos. Com todo respeito a Foucault, em “História da Loucura”, ele se esqueceu que o racismo causa danos psíquicos à população negra.

O que significa ter de ser forte o tempo todo? É desumano exigir essa força descomunal das mulheres negras. Elas precisam ser fortes porque o Estado é omisso.

Essa exigência de força atesta a ilegalidade do Estado. Poder assumir as fragilidades e tristezas e ter atenção a saúde mental de qualidade seria restituir de humanidade essas mulheres.

Mais uma vez, recorro a minha mãe, que morreu tão jovem, aos 51 anos, cheia de dores represadas e tristezas não ditas —com palavras que nunca disse, apesar de seu silêncio gritar muitas vezes. Acho que, além de mim, ninguém perguntou à minha mãe onde doía ou perguntou sobre seus sonhos interrompidos pelas desigualdades e pela falta de atenção.

Quem não vem desse lugar social tem o privilégio de ser distraído ou de dizer que nem sequer percebeu ou notou. Além do câncer que a tirou tão precocemente de nós, poderia pôr em seu obituário: também morreu de solidão.

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