Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Acordar de uma interpretação errônea deveria ser algo bom

Em vez de se apegar à vitimização do 'eu não acredito que essa maldita fez isso comigo', poderíamos simplesmente agradecer pelo despacho

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Faz algum tempo que me coloco a pensar sobre a injustiça que foi criada em torno da palavra desilusão.

Quando a falamos, geralmente, é com uma conotação negativa, triste, de lamento. “Estou desiludida com tal político” e “como superar uma desilusão amorosa” são algumas das coisas que se pode ouvir muito. Erro de percepção ou de entendimento, interpretação errônea, engano dos sentidos ou da mente são alguns dos significados de ilusão dadas pelo dicionário.

Logo, acordar de uma interpretação errônea, desiludir-se, deveria ser algo bom. Compreender que se estava errado e assumir não deveria ser visto como ruim. Doloroso, talvez, por machucar a vaidade em ter se enganado, mas não ruim. 

Ilustração de uma mulher negra com os cabelos presos no alto da cabeça. Ela está vestindo uma blusa laranja e segurando um copo em uma mão e uma chaleira na outra, onde está escrito "VIDA REAL"
Linoca Souza/Folhapress

No âmbito pessoal, poder enxergar quem uma pessoa realmente é deveria ser considerado livramento.

Quantas vezes nos enganamos com falsos amigos, pessoas que agem da forma vil a partir do instante que recebem um não, ou ainda, percebemos que aquelas que mais ajudamos são as principais traidoras.

Num primeiro momento, a gente tenta negar, mostrar a si mesma que não poderia ter se enganado tão profundamente. Depois, vem a raiva pela traição e ingratidão. Daí vem a doce libertação da desilusão para te dizer: “Acorda, você estava iludida”. 

Em vez de se apegar à vitimização do “eu não acredito que essa maldita fez isso comigo”, poderíamos simplesmente agradecer pelo despacho. Mas nosso ego ferido, que ama uma ilusão, se nega a enxergar a benesse de ver quem é quem. 

Eu sei que não é fácil. Muitas vezes, quem mais recebeu de nós são os que vão se mostrar injustiçados e nos atacar da forma mais vil quando a fonte seca. Mas hoje, após muitas desilusões, penso que o mais inteligente é ajoelhar e rezar. No meu caso, acender uma vela e agradecer por terem tirado a venda dos meus olhos.

Como seria bom se eleitores do Bolsonaro se dissessem desiludidos, acordassem desse sono profundo e vil e percebessem o que está se passando no Brasil. 

Seria maravilhoso se mulheres iludidas por discursos vazios de homens controladores tivessem condições concretas para despertar e procurar outros caminhos em suas vidas. 

Imaginem quão maravilhoso seria se mulheres pudessem ter condições de se perceberem iludidas com o discurso do patriarcado.  Mas ilusão, também segundo o dicionário, pode ser efeito produzido pelo ilusionismo. E há milhares de ilusionistas na política, nas mídias, nos espaços de poder em geral, distorcendo verdades, criando efeitos que hipnotizam e alienam. 

Foram esses ilusionistas que inventaram que a desilusão é ruim. Imagina perceber que o debate sobre a “mamadeira de piroca” foi uma ilusão para desviar a atenção da retirada de direitos e desmonte de políticas públicas. 

Às vezes, a desilusão pode doer tanto que é melhor insistir no erro. Em outras, se está tão afundado nas ilusões que sequer há espaço para sair delas. 

Os ilusionistas são mestres em impedir o acesso à verdade. 

Pior, vão categorizar os “desilusionistas” como inimigos da nação, aquelas e aqueles que devem ser controlados, perseguidos. Mulheres questionadoras serão consideradas loucas e histéricas, mal-amadas, infelizes que querem destruir o amor.

Mulheres negras serão colocadas no lugar das raivosas, barraqueiras, ou como dizia Lélia Gonzalez —uma grande desilusionista—, como criadoras de caso. Ora, para que criar caso sobre o aumento do feminicídio se tudo é uma questão de postura? 

Já disse o grande ilusionista que está na Presidência que se trata disso com o aval de muitos ilusionistas disfarçados de ativistas. Com as redes sociais, o perigo da ilusão aumentou. São corpos sarados, vidas felizes e perfeitas. Textões de especialistas em Facebook, ilusionistas até na militância, fazendo seus efeitos vazios e destituídos de reflexões críticas para atrair o que seria a moeda mais poderosa das redes sociais: o like.

Não importa se é verdade ou não, se houve leitura para escrever algo, se aquilo o que se diz vai atacar, ofender: o importante é lacrar, ops, lucrar com o like. Quanto mais like, mais o ilusionista se sente poderoso para desvirtuar assuntos sérios.

Se Jesus nos mandou tomar cuidado com falsos profetas —e há vários, inclusive na Prefeitura do Rio de Janeiro, hoje—, deveríamos tomar cuidado com um tipo de ilusão poderosa trazida com as redes sociais: a da auto-importância.

“Eu não queria ter que falar algo”, “vocês me obrigam a ter que dizer tal coisa”. Quem sofre dessa ilusão pode começar um texto assim. Então, se eu pudesse dar um conselho, seria: desiludam-se. Uma das músicas mais lindas que já ouvi se chama “Calling You”, tema do filme “Bagdad Café”. Em um trecho, Jevetta Steele canta: “Venha logo, doce libertação”.

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