Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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É importante que se traga a memória dos ancestrais, disse Toni Morrison

Há uma ânsia nos mais jovens, mas sinto que, às vezes, falta olhar para o passado e aprender com ele

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Como será o mundo após a pandemia? Essa é uma pergunta que algumas pessoas me fazem. Eu não tenho respostas prontas e também não sou daquelas que gostam de previsões. Eu posso falar de como eu gostaria que o mundo ficasse, mas não dar certezas imprevisíveis.

Nesse momento de isolamento, me pus a assistir a entrevistas de mulheres que admiro. Quero aprender mais sobre o que o mundo foi e como foi possível resistir a ele.

Ilustração de três mulheres negras sentadas em uma sala de estar. Duas tem cabelos brancos e uma não, as três estão com cobertores no colo e cada uma com uma caneca nas mãos
Linoca Souza/Folhapress

Em uma entrevista que Toni Morrison concedeu em 1998, ela disse “é importante que sempre se traga a memória dos nossos ancestrais, pois eles passaram por situações inimagináveis e resistiram”. Como uma mulher do candomblé, não poderia concordar mais.

Em tempos de desesperança, penso ser importante resgatar esses saberes, ler sobre o quilombo dos Palmares e aprender as estratégias de organização em uma época em que pessoas negras eram mercadorias, aprender com a capoeira, que considero uma das melhores metáforas da vida. Tem a hora de bater, de desviar do golpe, de gingar, de tocar uma música no berimbau para avisar os companheiros que os senhores de engenho estavam vindo. Para esses senhores, a capoeira era dança, mas os negros escravizados sempre souberam que era luta —essa sabedoria de saber parar, escutar, observar.

Há uma ânsia nos mais jovens —é totalmente compreensível, mas sinto que, às vezes, falta olhar para o passado e aprender com ele.

Não quero ser da geração que sabe tudo. “A verdade que eu estava mais interessada era conhecer a natureza da opressão e como as pessoas sobrevivem a ela ou não”, Morrison diz, respondendo a uma pergunta do entrevistador.

Talvez, em vez de querer entender essa natureza sozinha, eu possa ver o caminho já percorrido por Morrison e aprender quem foram as pessoas que sobreviveram —e, se sobreviveram, como elas fizeram isso, quais foram os aprendizados e estratégias, como elas viam o mundo, quais foram as gingas e os golpes, as dores, os motivos de suas lágrimas.

Olhar para o passado é um modo de lidar com o presente. Muitas vezes é o que me salva de não ser engolida pelas dores da realidade.

Como ativistas, sempre querem que a gente dê respostas ou as saiba, ou que tenha uma postura dura apenas. A literatura de Morrison me salvou das agruras da falta de amor. Pois nela me vi, me incomodei, lidei com o incômodo, aprendi sobre histórias que não me contaram, enxerguei o poder da coletividade entre mulheres, sorri ao ver uma personagem viver uma aventura, chorei com as desventuras, amei o reflexo no espelho. Novamente, fui curada da falta de amor.

Pois o amor, segundo Morrison, é o elemento fundamental. Não o amor banalizado e esvaziado de sentido, mas o amor pela comunidade, aquele capaz de destruir os muros da ignorância e do auto-ódio.

Ainda na entrevista, Morrison cita o caso de um jovem que se dedicava a ir ao hospital para pegar no colo crianças órfãs, e o quanto essa ação era uma prova de amor. Nessa ânsia megalomaníaca de mudar o mundo, podemos esquecer os pequenos gestos, a dedicação ao outro, o amor ao olhar no olho do outro e reconhecê-lo, lembrar de pegar as crianças no colo e não somente fazer análises de como o mundo será, lembrar que há uma pessoa por trás da tela do computador e pensar se o que vou falar é, de fato, algo construtivo ou só para acariciar o ego.

Não quero ter a pretensão de dizer tudo, mas de ter a humildade de aprender e silenciar quando necessário.

Grada Kilomba uma vez disse em uma entrevista: “Há dias em que me sinto forte, há dias em que me sinto fraca, há dias em que não quero ver ninguém, há dias em que eu rio muito. Todo dia é diferente. Há dias em que eu faço piada, há dias em que eu choro. E isso faz parte desse processo de humanização, porque o racismo não nos deixa ser humano. O racismo nos coloca fora da condição humana, e isso é muito violento. E muitas vezes nós achamos que alcançar essa humanidade se dá através da idealização. Se o racismo diz que eu não sei, eu vou dizer que sei ainda mais. E, para mim, é muito importante desmistificar isso. Eu quero ser eu, não quero ser idealizada e nem inferiorizada. E eu, assim como todas as pessoas, quero dizer que há dias em que sei e dias em que não sei. Às vezes eu choro e às vezes eu rio, às vezes eu quero e às vezes eu não quero. Quero ter essa liberdade humana de ser eu”.

Talvez essa seja a minha resposta, não sei como o mundo ficará, mas vou aprender a lidar com ele.

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