Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Vingança de negros virá com gosto do sangue que há mais de 500 anos jorra neste solo

Os insurgentes não se esquecem dos que foram ao Pelourinho segurar o açoite contra uma carne negra

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Gostaria de começar este texto prestando minha solidariedade à família das primas Emilly Victoria Silva dos Santos, 4, e Rebeca Beatriz Rodrigues dos Santos, 7, assassinadas enquanto brincavam na porta de casa em Duque de Caxias, Rio de Janeiro.

Gostaria de poder dizer palavras de consolo, mas não há consolo possível. A verdade é que estamos cansadas e cansados de humilhações, injustiças e morte do nosso povo. A verdade é que não é possível segurar o grito por justiça na garganta, o grito pela humanidade que nos é negada.

Me apoio nas palavras do babalorixá Rodney William para expressar minha indignação: “Estamos cansados de enterrar nossos filhos, de não ter direito à dignidade, à vida. Estamos cansados desse tratamento desumano, desigual, desleal. Estamos cansados desse cinismo, desse racismo, dessa pobreza. Nosso levante está em curso. Nós avisamos: somos de paz, mas não queiram ver nossa guerra. Essa vingança virá com gosto de sangue, do sangue que há mais de 500 anos jorra neste solo, deixando florescer o ódio dos que são assassinados diariamente, mas insistem em não morrer”.

Pessoas negras seguram cartazes em protesto
Ato do movimento Vidas Negras Importam, na Cidade Tiradentes, em São Paulo, em 4 de julho de 2020 - Bruno Santos/ Folhapress

Reitero as perguntas do advogado e professor de direito Thiago Amparo para este jornal: “1) O governador autorizou ou foi informado da operação policial?; 2) Contatou as famílias das vítimas e pretende repará-las ‘ex-officio’ (por exemplo, com indenização vitalícia)?; 3) O que o governo fez em cada uma das mortes de crianças em operações envolvendo polícias do Rio de Janeiro em 2020?; 4) Cooperou com a Alerj e o Judiciário para investigar mortes envolvendo policiais, crime organizado e milícias?; 5) O Ministério Público foi informado do caso e está acompanhando em cumprimento à Resolução 129/2015 do Conselho Nacional do MP?”.

Amparo finaliza: “Quem responderá pelo genocídio em curso?”. O projeto foi encabeçado pelo então governador do Rio de Janeiro, eleito dizendo que a polícia iria “mirar na cabecinha” e atirar, que foi a um evento em que se quebrou a placa com o nome de Marielle Franco. Esse projeto responderá pela morte de Emilly, de Rebeca, Ágatha, João Pedro? Como podemos falar em uma democracia com crianças sendo mortas aos montes? Quem se amparou em discurso que produz mortes precisa ser questionado e responsabilizado quando essas mortes se materializam.

Há mil dias, Marielle Franco foi assassinada no exercício do seu mandato. Onde estão as respostas para esse crime? Como é aceitável que passemos mais um dia sem que a pergunta sobre quem mandou matá-la seja respondida?

Feridas, tristes e cansadas de tanta injustiça, nós seguiremos transformando o que a vida faz com o nosso grupo social em insurgência. A ferida empresta seu lugar à raiva transformadora, a tristeza faz companhia à resiliência e a injustiça segue sendo combatida, pois nossos filhos e nossas filhas não merecem viver nesse mundo. E pelas próximas gerações, lutamos e lutaremos para que vivamos em uma era na qual esse estado de coisas seja inadmissível.

Com memória de elefante, nós lembramos quem esteve e onde esteve nas encruzilhadas da história. Lembramos quem, vivendo em um país desigual, social e racialmente como o nosso, trabalhou contra ações afirmativas e endossou discursos que precarizam políticas públicas. De quem homenageou torturador, quem falou que ia atirar na cabecinha, quem falou que a polícia ia atirar para matar. De quem pediu voto em nome de Deus e Jesus para projetos políticos que assassinam crianças e jovens aos montes.

Nós nos lembramos de quem já se deu conta da situação absurda do Brasil, mas segue ignorante para preservação de seus privilégios. Como dizem, os insurgentes nunca se esquecem daqueles que foram ao Pelourinho celebrar e segurar o açoite contra uma carne negra. A ancestralidade não permite o esquecimento, e esse sorriso podre no banquete sanguinário que a supremacia branca vem celebrando há séculos no país será e já está sendo cobrado. A hora é agora —o que você, do seu lugar social, está fazendo?

Se eu pudesse falar alguma coisa de consolo nessa situação, diria que a conscientização racial não tem volta. Que nós vamos chorar e que vamos à luta. Que pessoas negras estão cada vez mais se entendendo como negras. Que a transformação está em curso, dia a dia, subindo em um grande tronco formado a partir das raízes históricas de luta do povo negro por humanidade.

Quando duas caem, uma comunidade se levanta. Que nossos ancestrais as recebam em festa e que aqui seja feita justiça para elas e para todo um povo.

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