Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Aborto legal e seguro não é um assunto de religião, mas de saúde pública

Brasil segue na contramão dos seus vizinhos da América do Sul, ignorando mortes de mulheres e de meninas

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As políticas de proteção às mulheres no Brasil seguem sendo de uma irresponsabilidade que tem gerado mortes, violências diversas e aprofundado desigualdades no país.

Na última terça-feira (28), ocorreu o Dia Global pelo Aborto Seguro. A data foi celebrada pelos nossos vizinhos chilenos com a aprovação pela Câmara dos Deputados da descriminalização do aborto até a 14ª semana, projeto que segue para votação na outra casa legislativa.

No Brasil, contudo, a data traz outros desafios. Pela lei brasileira, na contramão dos vizinhos da América do Sul, o aborto somente não é criminalizado em casos de estupro, quando o feto for anencefálico ou quando a gravidez resultar em perigo de vida para a mãe.

Contudo, a realidade é bem mais complexa. Em primeiro lugar, é importante destacar que os registros de estupro —um crime por si só com alto índice de subnotificação— cresceram 13% no interior do estado de São Paulo e 19,5% na região metropolitana. Os números foram divulgados recentemente pelo Instituto Sou da Paz, após análise de dados compilados pela Secretaria de Segurança Pública do estado e pelas corregedorias das polícias Civil e Militar. Também foi registrado um aumento dos registros de feminicídio em 2,6% em todo o estado.

Nesse cenário de extremo perigo e violência para mulheres e crianças, vale dizer que o aborto segue sendo criminalizado ainda dentro das hipóteses legais. Em hospitais que realizam o procedimento do aborto legal no país, com vítimas de estupro —muitas delas crianças—, há vigílias de jovens católicos que constrangem quem já passou por um trauma.

Nesta semana veio à tona a notícia de uma adolescente de 14 anos, grávida vítima de estupro, que teve o direito ao aborto legal negado por uma juíza, em Minas Gerais, que teria divulgado a sentença em um grupo de WhatsApp.

Casos como esses nos lembram a ministra da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, que foi apontada por movimentar a gigantesca máquina pública usada para assediar uma menina negra de dez anos de idade que foi engravidada por um tio. O assunto, que deveria ser caso de polícia tendo a ministra como alvo, ruma para o esquecimento.

A bem da verdade, esses movimentos de constrangimento em hospitais, além de fazer as vítimas sentirem ainda mais o peso do trauma, também interferem na rotina dos profissionais da saúde em um momento tão delicado quanto o que estamos vivendo.

De início, acho curioso que padres que estão sendo julgados por vários casos de pedofilia que foram silenciados ao longo da história, como aquele ocorrido em Limeira, no interior de São Paulo, não contem com vigílias semelhantes.

Mas o que eu gostaria mesmo de destacar é a recente entrevista de Rosângela Talib —coordenadora da organização Católicas pelo Direito de Decidir— para a Agência Pública. A ONG presente em países latino-americanos realiza um importante debate sobre o direito ao aborto como uma política de saúde pública dentro da Igreja Católica desde 1993.

Para ela, “as pessoas têm o direito de ser contrárias ao aborto, mas não de impor sua visão como política pública. Isso fere a laicidade do Estado. A maternidade tem que ser de livre escolha, não uma imposição”.

Rosângela destaca na entrevista o retrocesso dos direitos das mulheres causado pela mentalidade religiosa patriarcal: “Essa mentalidade conservadora religiosa foi institucionalizada no país, mesmo com uma Constituição que garante a laicidade do Estado. O Estado não professa nenhuma religião, não deve professar. Ele deve fazer valer a pluralidade. O resultado dessa mentalidade conservadora institucionalizada é o crescimento da maternidade na adolescência, dados estarrecedores sobre casamentos infantis. A gente precisa de educação sexual nas escolas, não de um governo que prega abstinência”.

Ilustração mostra quatro mãos femininas segurando o sistema reprodutor feminino
Publicada em 30 de setembro de 2021 - Linoca Souza

Como está posta a legislação no Brasil, mulheres em condição econômica desfavorável, em sua maioria negras, indígenas e quilombolas, acabam por ser vítimas evitáveis do aborto inseguro, ao passo que mulheres de condição favorável —mesmo católicas— têm acesso a clínicas clandestinas para realizar o aborto seguro.

Como explica Rosângela: “Apesar de a legislação ser uma, as mulheres que têm dinheiro vão acessar clínicas particulares para fazer abortos seguros. Quem morre são as pobres, as negras e as mulheres indígenas. Morrem desnecessariamente. Se a tecnologia permite hoje fazer a interrupção de uma gravidez de forma medicamentosa e domiciliar, nada justifica uma mulher morrer numa clínica clandestina de aborto”.

Já não bastasse a criminalização do aborto, que promove, por ano, centenas de milhares de mortes de mulheres que recorrem a métodos inseguros, estamos passando por tempos ainda mais nebulosos de imposição de crenças religiosas em um país que, apesar de intensos ataques à Constituição, é um país laico.

Aborto legal e seguro é um assunto de saúde pública, não de religião.

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