Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Minha mãe não foi trouxa por acreditar que cuidar da casa era digno

A gente acha que isso é coisa de mulher ultrapassada, quando deveria ser algo valorizado por qualquer pessoa

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No processo final da escrita do meu quarto livro, que rememora acontecimentos da minha infância e adolescência e celebra o feminino da minha família, coloquei-me a pensar sobre muitas situações que afligem a vidas das mulheres, sobretudo mulheres negras; sobre as mentiras que nos contam.

Minha mãe cresceu acreditando que ela não era boa o suficiente, por mais que ela cozinhasse como ninguém. “Isso não conta, é obrigação de mulher.” Ela também cuidava muito bem da casa e tirava qualquer tipo de mancha das roupas ou paredes. “Também não conta, é obrigação de mulher.”

Ela conseguiu manter quatro filhos sempre alinhados e chegando à escola no horário, educados, mas igualmente sem ter o reconhecimento. As funções impostas para as mulheres não são vistas pela perspectiva da genialidade, embora quem critique, na maioria das vezes, não conheça a sabedoria da limpeza.

mulher segurando espanador de pó em desenho de fundo rosa claro
Linoca Souza

Quando empregada doméstica, antes de casar com meu pai, os patrões julgavam que ela dominava a arte do cuidado porque era próprio de mulheres como ela, tanto que, anos mais tarde, quando eu era adolescente, perguntavam a ela se eu já poderia trabalhar também, por mais que não tivesse os dons de minha mãe.

No meu caso, vinha o espanto: “Como ela não sabe, achei que todas vocês soubessem...”. Claro que sei cuidar das minhas coisas. Minha mãe me criou para isso, mas nem de longe tenho as habilidades dela.

E admiro. Em um país no qual o trabalho doméstico é desvalorizado, herança da escravidão, não há reconhecimento digno. Minha mãe foi uma mulher bem-sucedida, criou quatro filhos, aguentou muitas coisas do meu pai, me ensinou a ser honesta, andar de cabeça erguida. Mas nós somos ensinadas a acreditar que nossas mães foram fracassadas, não eram inteligentes, quando souberam multiplicar comida e fazer o dinheiro chegar até o fim do mês.

“Jamais serei como minha mãe”, eu dizia na adolescência, baseada na crença de que me afastar o máximo possível do que ela foi seria sinônimo de sucesso. As opressões estruturais não permitem realidades sócio-materiais dignas para muitas mulheres negras, mas eles insistem em contar a mentira de que “é só se esforçar que consegue” quando mulheres da origem da minha mãe foram as que mais se esforçaram para, mesmo na escassez, fazer a soma do dia a dia. De surpreender a matemática e fazer dois mais dois virar seis.

Com o passar do tempo, passei a olhar para minha mãe com generosidade e admiração. Ela que fazia pão caseiro, iogurte, arroz com cascas de legumes, reaproveitava a água do arroz, colocava baldes no quintal quando chovia para aproveitar a água da chuva, já sabia mais de sustentabilidade do que eu conseguia perceber. O modo como tirava o vinco das calças, de uma genialidade sem igual. A mulher que não teve oportunidade de estudar, mas lutou para que seus filhos tivessem.

Daí a gente estuda e acha que cuidar da casa é coisa de mulher ultrapassada, quando deveria ser algo valorizado por qualquer pessoa independentemente de sexo e raça. Que cuidar de uma casa requer habilidades e talentos admiráveis, também é uma intelectualidade. Porém, no país do escravismo, isso não é visto como profissão digna. O quarto da empregada é uma extensão da senzala.

À época da PEC das Domésticas, observamos reações estupefatas pelo fato de se equiparar direitos a essas trabalhadoras —“um absurdo a faxineira ganhar mais do que eu”.

No mundo do “ruim com ele, pior sem ele”, acreditamos que a relação heterossexual deve ser a expressão hierárquica do amor. Crescemos acreditando que nossa vida precisa corresponder às expectativas masculinas. Eu me recordo de muitas vezes ouvir de homens coisas como “isso, sim, é mulher, não o que eu tenho em casa” ou “você, sim, é especial, e não as outras” como se minha vida sempre tivesse que ser pautada em oposição a outras mulheres, uma tática para que enxerguemos nas outras potenciais competidoras.

Assim que entendi o que essas coisas significavam, respondia com “a mulher que está em casa é que não merece tipos como você; deve estar limpando, passando e cozinhando pra você ficar aí de palhaçada na rua”. Porque me doía quando eu ouvia algumas amigas dizerem: “Eu não sou a trouxa que limpa e cozinha, eu só tenho a parte da diversão”, diminuindo outras mulheres.

Na verdade, as duas eram somente instrumentos para a manutenção de uma lógica que não as privilegia. Minha mãe não foi trouxa por acreditar que cuidar da casa era digno. Triste é a sociedade que não valoriza o cuidado, mesmo dependendo dele para funcionar.

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