Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu LGBTQIA+

Sistemas diferentes de dominação não funcionam da mesma maneira

A luta pela cidadania de mulheres negras e de pessoas transexuais exige estratégias políticas distintas

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Na coluna desta semana convido o professor Adilson Moreira, doutor em direito antidiscriminatório pela Universidade Harvard, que nos brinda com uma reflexão sobre identidades. Segue o texto.

O direito antidiscriminatório nos mostra que a noção de identidade ocupa um papel fundamental nos debates sobre direitos de grupos subalternizados. Entretanto, alguns de seus aspectos não são adequadamente compreendidos.

Como os seres humanos vivem e interagem em sociedades estruturadas a partir de relações hierárquicas de poder, as diferentes identidades, ou seja, as categorias utilizadas para a classificação de indivíduos e grupos refletem assimetrias sociais, motivo pelo qual todas elas possuem uma dimensão política. Muitas dessas referências não são criações autônomas, mas prescrições sobre os lugares que certos grupos podem ocupar, sobre o que podem ser, sobre o que podem almejar, sobre como devem viver. Elas possuem então uma dimensão prescritiva.

Na ilustração, estão presentes seis figuras de costas, uma atrás da outra, sendo que cada uma têm características que as diferenciam entre si: tons de pele diferentes, cabelos longos, curtos, presos ou soltos, e roupas em tons de azul, marrom ou vermelho.
Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro - Aline Bispo

Todos os seres humanos moldam suas ações a partir de prescrições culturais estabelecidas pelos grupos dominantes. Homens instituem os parâmetros para a determinação das funções de homens e mulheres, brancos estabelecem os lugares que brancos e negros devem estar, heterossexuais designam quais direitos heterossexuais e homossexuais podem exercer. Essas identidades subalternizadas possuem uma dimensão prescritiva, todas elas contêm uma dimensão política porque estabelecem diretrizes para a estruturação da sociedade.

Os grupos dominantes podem determinar a si mesmos porque criam as regras para o exercício da autonomia; aos subalternizados cabe acolher o que lhes é prescrito. A luta desses segmentos tem caráter político porque ela está centrada, entre outras coisas, na busca pela possibilidade de autodeterminação individual e coletiva. Vemos então que o sucesso da luta pela libertação depende do abandono da associação entre pertencimentos coletivos e lugares naturais, aspecto central do caráter prescritivo das identidades, ponto de partida para a legitimação de práticas discriminatórias.

Sistemas de dominação estão baseados em identidades prescritivas, mas eles não funcionam da mesma maneira. A restrição da liberdade de mulheres negras é produto do impedimento do exercício de direitos em função da discriminação convergente e paralela baseada na raça e no gênero; ela decorre da imposição da assimilação cultural aos padrões construídos a partir da feminilidade branca.

Mulheres negras são vítimas da ridicularização estética, além de serem quase sempre punidas quando reagem a discriminações. A restrição da liberdade de transexuais acontece por meio de práticas discriminatórias contra indivíduos que não expressam conformidade de gênero, pela tentativa de impor a conformidade desse grupo à identidade heterossexual, pelas microagressões dirigidas a pessoas cuja identidade de gênero difere da realidade corporal, pela punição por meio da violência física por não acolherem prescrições baseadas na presunção de que o corpo biológico determina a identidade psicológica.

A operação dos fatores responsáveis pela opressão de mulheres negras e de pessoas transexuais possui a mesma lógica porque é construída em torno de identidades prescritivas. Mas os processos mencionados no parágrafo anterior demonstram que práticas discriminatórias contra grupos subalternizados não assumem a mesma forma. Isso significa que medidas destinadas à proteção de mulheres negras não podem ter exatamente o mesmo conteúdo ou o mesmo propósito das medidas que pretendem proteger homens e mulheres transexuais.

Pressupor a homogeneidade interna de grupos subalternizados impede a identificação dos mecanismos responsáveis pela condição de exclusão na qual se encontram. A luta pela cidadania de mulheres negras e de pessoas transexuais exige estratégias políticas distintas porque os processos de subalternização desses grupos são distintos. Esses dois grupos políticos podem e devem criar coalizões para lutar contra sistemas de opressão. Todos os grupos subalternizados devem lutar conjuntamente para que esse problema seja superado, mas não podemos nos esquecer que o sucesso desse enfrentamento depende do diagnóstico dos meios específicos a partir dos quais identidades prescritivas impedem o exercício de direitos.

O feminismo interseccional (viva Lelia Gonzalez!) demonstrou de maneira enfática que a defesa da homogeneidade interna de grupos sociais como estratégia de luta política é uma prática muito perigosa que deve ser abandonada imediatamente. Não podemos ignorar essa lição.

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