Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Argentina, 1985

Adriana Calvo de Laborde escancarou tortura da ditadura militar

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A Junta Militar argentina e seus nove comandantes responsáveis pelo regime que, em pouco mais de seis anos, sequestrou, torturou e matou mais de 30 mil pessoas, tinham uma maior aderência de parte da população até Adriana Calvo de Laborde, interpretada por Laura Paredes, ser chamada ao banco de testemunhas do Julgamento das Juntas, em 1985.

A história está no filme "Argentina, 1985", o qual conta a primeira vez em que um tribunal civil condenou uma ditadura militar. Dirigido por Santiago Mitre, o filme recebeu o Globo de Ouro estadunidense na categoria "Melhor Filme Estrangeiro".

Ricardo Darín e Peter Lanzani em cena do filme "Argentina, 1985", de Santiago Mitre
Cena de "Argentina, 1985", longa de Santiago Mitre - Divulgação

Até aquele depoimento de Laborde, havia inúmeros relatos de pessoas torturadas, que viam outras serem mortas em centros clandestinos de detenção mantidos pelo regime ditatorial de Jorge Rafael Videla.

Contudo, diziam cinicamente os apoiadores do regime que todos eram terroristas numa guerra civil e mereciam esse tratamento. As evidências de genocídio e desaparecimentos não eram suficientes para convencer parte da população. O filme mostra uma representante desse grupo, a mãe de um dos promotores, que ia à mesma missa em que iam o general mandante do sistema político gerador de mortes.

Para parte da população, as denúncias eram, na verdade, expressões das "torturas normais", uma suposta coação fria e calculada de uma pessoa subversiva a fim de obter dela informações que desbaratassem uma organização revolucionária. Com um objetivo claro, parte considerável da imprensa e das igrejas, e parte maior ainda dos próprios militares, não condenava publicamente a Junta Militar.

Mas, assim como a venda dos olhos, o cinismo tem um limite e o limite foi Adriana Calvo de Laborde, a primeira testemunha arrolada no julgamento como alguém que sofreu a violência do regime.

Adriana contou que em fevereiro de 1977 foi sequestrada em sua casa, grávida de seis meses e meio. Colocaram-na no carro com o rosto coberto e as mãos amarradas nas costas e pisaram-na, enquanto faziam ameaças de que iriam matá-la a qualquer momento.

Apesar de estar em estágio avançado de gestação, Adriana foi torturada e assistiu a outras pessoas também serem torturadas. Em uma das ocasiões, o único propósito da tortura, praticada durante um churrasco dos guardas e que durou todo um dia, era que o torturado dissesse: "Gosto de pau e minha mãe é uma filha da puta". O homem não disse o que queriam.

Estupros eram cometidos pelos torturadores, uma forma de destruição física e psicológica contra as mulheres. Muitas pessoas foram assassinadas e tantas outras permanecem desaparecidas. Outras inúmeras foram sequestradas e entregues a famílias aderentes ao regime. E resgatá-las é uma das principais motivações das Mães da Praça de Maio até os dias de hoje.

Adriana Calvo de Laborde foi amarrada durante o trabalho de parto, vendada e deitada em um carro. Implorou aos guardas para que parassem o veículo e eles não faziam nada, apenas a insultavam.

Na ilustração de fundo amarelo, está uma figura feminina, com um casaco alaranjado. Ela está em um espaço de tribunal, diante de dois microfones.
Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro de 12.jan.2023 - Aline Bispo

Desesperada, Adriana deu algum jeito de tirar sua calcinha e seu bebê nasceu, caiu no assento ligado à mãe apenas pelo cordão umbilical. Era uma menina. Os guardas seguiram viagem com a filha chorando e a mãe amarrada. Chegaram até um edifício da ditadura, onde colocaram a bebê numa bancada de mármore e a mãe só poderia abraçar sua filha após limpar todo o piso e bancadas. Ela estava nua e foi obrigada a fazer a limpeza em frente aos oficiais, que riam.

O depoimento de Laborde mudou os rumos do caso e pavimentou o argumento da acusação do promotor Julio Strassera, interpretado por Ricardo Darín. Sadismo, disse o promotor, "não é uma ideologia política nem uma estratégia bélica, mas uma perversão moral". Parte da população seguiu apoiando o descalabro, mas outra parte significativa conseguiu pôr a mão na consciência.

Recentemente, nesta Folha, escrevi um texto em homenagem à Amelinha Teles, grande feminista de base deste país. Amelinha foi torturada por Carlos Alberto Brilhante Ustra na frente de seus filhos de quatro e cinco anos, crianças que também assistiram à tortura de seu pai e marido de Amelinha, César Teles (in memoriam). Sua irmã Crimeia de Almeida foi torturada grávida de sete meses. Teve o filho estando encarcerada e somente pode vê-lo 53 dias depois, desnutrido. Em nome desse torturador, o ex-presidente Jair Bolsonaro dedicou seu voto no "impeachment" de Dilma Rousseff, outra mulher torturada por Ustra, com sequestro e espancamento.

No Brasil, os caminhos foram diferentes dos percorridos na Argentina, apesar de ter sido instituída a Comissão da Verdade em 2011.

Que o momento atual, inspirado pelo brilhante filme argentino, possa fazer com que o país enfrente seus fantasmas e faça justiça às famílias vítimas da ditadura. Sem anistia.

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