Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu Todas

Filme mostra o valor da palavra em um acordo

Para pessoas de vida honrada, como o protagonista, ela significa tudo

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Das alegrias que tive nesta semana, uma delas foi assistir ao filme "O Próprio Enterro". A obra se baseia em fatos históricos e é estrelada por Jamie Fox, o qual interpreta o advogado Willie Gary no processo judicial movido por Jeremiah O’Keefe, um senhor de 72 anos de idade, dono de uma funerária pequena no sul do Mississipi, contra o grupo Loewen, dono de inúmeras funerárias no Canadá e nos Estados Unidos.

O caso gira em torno de uma das primeiras cenas do filme, situado no início dos anos 90. Em um barco luxuoso para onde foi convidado para fechar o negócio, Jeremiah apertou a mão de Raymond Loewen, presidente do grupo, selando a venda de algumas de suas unidades funerárias ao poderoso empresário.

Só que Raymond não honrou sua palavra, dando início ao inconformismo por parte de Jeremiah. A impressão que começou a tomar força era a de que o grupo Loewen colocou a pequena funerária em banho-maria, esperando a hora da falência para que fosse comprada a preço irrisório. O grupo apostava na escalada dos problemas financeiros da pequena funerária, situação que forçou a venda de algumas de suas unidades.

Diante do silêncio por parte do grupo Loewen, e aconselhado pelo jovem advogado Hal Dockins, o pequeno empresário do Mississipi procura Willie Gary, advogado que, sem experiência em contratos, fazia a defesa muito bem-sucedida e remunerada de casos envolvendo lesões corporais sofridas por pessoas negras.

A ilustração de fundo verde traz  uma mão negra e uma mão branca se cumprimentando
Ilustração de Aline Souza para coluna de Djamila Ribeiro de 26.out.23 - Aline Souza/Folhapress

Além disso, Willie Gary, nascido em uma plantação de cana-de-açúcar no sul dos Estados Unidos, nunca havia representado uma pessoa branca até aquele momento.

A atuação do advogado no processo o projetou nacionalmente, sendo ele hoje em dia reconhecido como um poderoso Davi contra tantos Golias. Venceu, ao longo das últimas décadas, processos vultosos contra organizações de parque de diversão e de tabaco, entre outras.

Algumas coisas me chamaram a atenção naquele filme: a primeira é o valor da palavra, que é tudo para pessoas de vida honrada como Jeremiah O’Keefe. Lembrou-me de pessoas mais velhas, cuja palavra afastava a necessidade de qualquer contrato. Trazendo isso para pensar a realidade de minha família, a minha avó, por exemplo, não sabia ler e escrever, logo não fazia contratos para construir sua vida. A palavra foi o suficiente e nada mais era necessário.

E são inúmeras as pessoas negras no Brasil que ouviram de suas mães que "a palavra é tudo o que a gente tem!". Muitas vezes, a literalidade dessa frase indica a ausência de bens materiais que possam ser dados em garantia, evidenciando a dificuldade da pessoa negra em errar diante de um poder branco que pode até não ter a palavra, mas tem posses para se fortalecer em negócios.

Descendentes de uma ética ancestral e frente a uma situação desvantajosa financeiramente, no meio da injustiça instituída pela discriminação estrutural do racismo, muitas pessoas negras brasileiras casaram-se com a verdade.

Naquele caso, ainda, O’Keefe enviou uma via assinada do contrato esperando uma resposta com a outra via também assinada. Relutou por meses em aceitar que a outra parte estava, de fato, envolvida em uma trama em seu prejuízo, até definir a estratégia de ingressar com uma ação judicial.

Loewen se defendeu da acusação afirmando que não havia vínculo com O’Keefe, pois ele não assinou nenhum contrato. A série explora ainda o contexto das injustiças raciais promovidas por sua empresa contra pessoas negras, encarecendo caixões onde havia o monopólio do serviço funerário, o que acontecia sobretudo em bairros de baixa renda.

Vindo de uma funerária pequena, não havia aquele tipo de acusação contra O’Keefe. Aliás, ele era considerado um aliado das pessoas negras por, quando prefeito, ter proibido manifestações da Ku Klux Klan na pequena cidade do sul que administrava. Mesmo sendo pessoas brancas nos dois polos da ação, Willie Gary, como um homem negro religioso, ficou tocado e assumiu para si a defesa da justiça nas alegações daquele homem.

É um ótimo filme. Chama sempre minha atenção a possibilidade de contar histórias como essa, produzida e protagonizada por pessoas negras com condições econômicas para tanto. No caso, Jammie Fox é protagonista e um dos produtores da obra. Trabalhamos para que um dia pessoas negras no Brasil tenham cada vez mais essa condição. Contar suas histórias é fortalecer o grupo como um todo. Como cantou Wilson Simonal, "com uma canção, também se luta, irmão".

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