Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

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Drauzio Varella

Dona Felipa

Ao cruzarmos na rua, ela sorria, pedia um beijo e me passava a mão na cabeça

Ilustração
Líbero/Folhapress

Dona Felipa era casada com seu Antônio Bombeiro. Moravam no primeiro quarto de um cortiço da rua Henrique Dias, no Brás, em que viviam uma família de imigrantes italianos com a criançada e duas de portugueses como ela e o marido.

Lembro dele no armazém da esquina, encostado no balcão de mármore, ao lado dos sacos de arroz, feijão e batatas, barricas com azeitonas e pilhas de bacalhau seco, comida de operários naquele tempo. Sobre o balcão, o copo de pinga ao lado de outro com água.

Não havia sido bombeiro, trabalhara numa oficina no Canindé até a aposentaria precoce causada por uma hérnia, segundo diziam. A alcunha viera do hábito de alternar cada gole de cachaça com outro de água, para cortar o efeito, conforme justificava. A estratégia nem sempre lhe assegurava a volta para casa com os passos em linha reta.

Bem mais jovem, dona Felipa andaria pelos 30 e tantos anos. Chamava a atenção quando passava na calçada do bar da outra esquina, de saia e blusa, com o xale preto nos dias frios, discrição que convinha a mulheres casadas daquela idade. Eu ficava incomodado com a malícia dos olhares e os cochichos dos homens. Sentia ciúmes dela.

Talvez porque viesse da mesma aldeia que minha avó materna ou porque não tinha filhos e eu fosse órfão de mãe, ela me tratava com carinho. Ao cruzarmos na rua, sorria, pedia um beijo e me passava a mão na cabeça. Toda vez que fazia doce de abóbora, saía na porta e gritava meu nome. A cozinha era impecável, o cheiro delicioso, o doce mais ainda.

Quando ralei o joelho no futebol em frente à fábrica, na rua de casa, ela me fez entrar, lavou a ferida com água morna e sabonete Vale Quanto Pesa, passou mercurocromo, cobriu com gaze e me beijou na testa.

Uma tarde, a ambulância do Samdu estacionou na porta do cortiço. Paramos o futebol. Seu Antônio saiu amparado por um enfermeiro de branco e seu Augusto, um cunhado que morava na rua de trás. Estava pálido, com os olhos amarelados e o abdômen inchado.

Passou quase um mês na Santa Casa. Quando voltou tinha o rosto encovado, os braços finos e o olhar mortiço. Nas poucas vezes em que andava até a esquina, vinha com a camisa do pijama, apoiado no ombro do cunhado.

Meu tio era médico recém-formado. Aos domingos, depois do café da manhã, eu defendia os pênaltis que ele cobrava no corredor da casa de minha avó paterna, em que a porta da sala fazia as vezes das traves. Pegava quase todos, sem desconfiar da condescendência do tio querido. Num domingo, quando acordei, encontrei-o com a maleta de médico, de saída para atender seu Antônio, que passava mal. Insisti tanto que fui junto.

O doente estava deitado. Era um fiapo de homem atrás da barriga que transbordava para além dos limites do corpo. Numa cadeira no canto, seu Augusto. Dona Felipa ajeitou o cobertor, desabotoou o pijama listado e expôs o abdômen do marido.

Meu tio abriu a maleta, encaixou uma agulha enorme num equipo de soro, esfregou um algodão com álcool na pele ressecada do abdômen e se ajoelhou no chão, ao lado. Não pude ver o que mais desejava, porque dona Felipa me abraçou por trás e me tapou os olhos.

Assim que me soltou, vi a agulha espetada da qual saía um líquido amarelo que corria pelo fio de plástico, para desaguar na bacia colocada sobre um tapetinho, junto à cama. Por duas vezes, o tio dobrou o fio para interromper a drenagem, enquanto o cunhado esvaziava a bacia no vaso sanitário, do banheiro coletivo.

Num sábado, a janela da casa amanheceu aberta. Do parapeito, pendia um manto de veludo preto com uma cruz de ouro bordada no centro. As mulheres estavam em volta do caixão sobre a mesa do quarto, iluminado pelos castiçais; os homens conversavam em voz baixa no corredor.

O caixão foi trazido para o carro fúnebre por homens de terno escuro. Na alça da frente, seu Augusto, com os olhos vermelhos e uma braçadeira preta no paletó.

Muitos anos mais tarde, no Hospital do Câncer, recebi um menino de dez anos com o diagnóstico de um tumor maligno, que julguei equivocado. Pedi a revisão das lâminas preparadas por ocasião da biópsia.

Ao saber que se tratava de uma lesão benigna, os pais abraçaram o filho num choro silencioso. Precisei me conter para não me juntar a eles.

Na semana seguinte, voltaram com um presente. A mãe do menino disse que tínhamos um passado em comum:

— Sou filha da dona Felipa e do seu Augusto, vizinhos da sua família na Henrique Dias.

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